2007




















Procura a maravilha.
Onde um beijo sabe a barcos e bruma.
No brilho redondo e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.

Eugénio De Andrade

natal


Um natal sereno para todos.



















en la otra orilla de la noche
el amor es posible

llévame
llévame entre las dulces sustancias
que mueren cada día en tu memoria

Alejandra Pizarnik

LÍNGUA



vês meu palato?
Observas como dele escorre a minha saliva,
adocicada pelo belo pecado da ânsia.

quero-te verde.
nem ouses negociação,
nem me fales da paleta de cores.
Sem mais,
assim me sacias na seiva
da esperança.

o inevitável desejo

O crepitar do sal diz que os teus lábios se encerraram para todo o eternamente. Primeiro: a tua palavra basta para demonstrar que é morto o tapente extenso por debaixo dos pés; segundo: foi porque um dia os abriste que a savana se inundou de lágrimas que apesar de invisíveis se sabem também detonadoras; terceiro: é no fundo justiça que fazes ao vivido da tua vida violada por tantos actos cacofónicos como estas últimas palavras. E eu lamento(-te), por saber que é parte que perdes de ti, da tua coisidade.
O respeito às lendas trago-o nas costas, para que um dia possa aliviar-me do seu peso. Será prova irrefutável, quando a maré te devolver à terra que julgas abandonar (tão triste aquele que julga encontrar no mar o que não lhe chega em terra). E no dia que voltares sem fôlego à tua espera estarão todos os propositados desencontros, sem uma sequer palavra de recriminação. Serás tu a recriminar-te.
Quem sabe, então... talvez reviva o gesto já explorado desta vez numa dimensão absurda, igual às histórias infinitas de suspiro e desejo comuns a todos (que nunca lhes tocaram).

cansaço

Há no meu ombro lugar para o teu cansaço
e a minha altura é para ser medida
palmo a palmo pela tua mão ferida.

Ruy Belo

Casa


Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão…

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.

(David Mourão-Ferreira)


Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo,
eu sei

Ainda assim,
escrevo

Mia Couto


















É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
quando a noite se destaca
da cortina;
quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
quando a força de vontade
ressuscita;
quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia-
que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz livida,
a palavra despedida.

David Mourão Ferreira

vem...




















Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

vem
ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

vem
antes que desperte em mim o grito
de alguma terna Jeanne Hébuterne
a paixão derrama-se quando tua ausência
se prende às veias prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

vem
com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

al berto























Tu encostavas o teu rosto
À inquietude do meu peito
Quando eu
Não tinha mais nada para dizer

Tu encostavas o teu rosto
À inquietude do meu peito
E escutavas
O meu sangue que corria
A minha paixão lacrimejante que morria

Tu ouvias-me
Mas não me vias

Forugh Farrokhzad

GULA




na recusa
do palato saciado
nasce permanentemente
o voraz apetite pelo belo.

Teardrop

Love, love is a verb
Love is a doing word
Fearless on my breath
Gentle impulsion
Shakes me makes me lighter
Fearless on my breath

Teardrop on the fire
Fearless on my breath

Night, night of matter
Black flowers blossom
Fearless on my breath
Black flowers blossom
Fearless on my breath

Teardrop on the fire
Fearless on my breath

Water is my eye
Most faithful mirror
Fearless on my breath
Teardrop on the fire of a confession
Fearless on my breath
Most faithful mirror
Fearless on my breath

Teardrop on the fire
Fearless on my breath

You're stumbling a little

Massive Attack
(em jeito de prenda!)

Commuter Love



















Freezing Monday morning
She is waiting for her train to come
I brush past her, smell her perfume
Watch her hair move as she turns to go
She doesn't know I exist
I'm gonna keep it like this
I'm not gonna take any risks this time
She's not like the others
With their papers and their headphones on
She reads novels by French authors with loose morals
She can do no wrong
I wouldn't say I'm obsessed
I don't wanna see her undressed
We can be prince and princess in my dream
And we're dancing
Through the evening
'Til the morning

divine comedy

interlúdio (três pedaços de tempo antes do sussurro)

quero que meus dedos falem
a linguagem da tua pele.

em cada arrepio nascido
no que conversam, um verso.
Assim constróis o poema maior que exalo,
no precioso ritmo do teu suspiro.

e manterei sempre a tua alma
bem longe das garras dos vampiros,
até que o sol renasça.

À sua volta crescia o silêncio, doloroso silêncio, semelhante ao que se estende por cima do mar cuja misteriosa mansidão nos acorda, obrigando-nos a descobrir, subitamente, que a solidão é muito maior do que julgávamos.

Al Berto

Yo también

Yo también me canso de nadar contra corriente,
de seguir andando cuesta arriba
de seguir luchando cada día
desearía detenerme,
desprenderme
descender
renunciar
olvidar
llorar.
Yo también he sentido las ganas de escapar de todo,
contagiarme de amnesia selectiva
dormir hasta que me canse
reir hasta que me duela
reencontrarme
consentirme
liberarme
amar.

DEVOÇÃO



formulo votos
onde deposito uma ânsia frémita
perante o nascimento de cada ruga minha:

que seja alvo predilecto
do pleno ousar que me fazem alado!
que nasçam, num voo sempre firme.
frutos assumidos do meu carácter menino,
quando docemente passeia,
numa solene ousadia.

lãnguido servo
do altar dos teus contornos.















Siempre llueve cuando te vas,
aunque lo desmientan los meteorólogos
y los turistas tomando
el sol en las terrazas.
Siempre llueve una lluvia pequeña
como de sal o de ceniza,
una lluvia cortada a la medida de mis hombros
y con mismo recorrido que mis pasos.
Siempre llueve cuando te vas
aunque la gente siga caminando y se pregunte
por qué corro calle abajo
con las ropas empapadas.

Alejandra Pizarnik

Guardo-te...


Eu deixarei que morra em mim o desejo
de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa
de me veres eternamente exausto
No entanto a tua presença é qualquer coisa
como a luz e a vida.

E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto
e em minha voz a tua voz
Não te quero ter porque
em meu ser está tudo terminado.
Quero só que surjas em mim
como a fé nos desesperados.

Para que eu possa levar uma gota de orvalho,
nesta terra amaldiçoada,
Que ficou sobre a minha carne
como uma nódoa do passado.
Eu deixarei ...
tu irás e encostarás a tua face em outra face.

Teus dedos enlaçarão outros dedos
e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu,
porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei a minha face
na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.

Porque meus dedos enlaçaram os dedos
da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência
do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos.

Mas eu te possuirei mais que ninguém
porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar,do vento,
do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente,
a tua voz serenizada.

Vinicius de Moraes

Um dia em que se possa não saber














Dai-me um dia branco, um mar de beladona,
um movimento
inteiro, unido, adormecido,
como um só momento.
Eu quero caminhar como quem dorme,
entre países sem nome que flutuam.
Imagens tão mudas
que ao olhá-las me pareça
que fechei os olhos.
Um dia em que se possa não saber.

Sophia de Mello Breyner

ao guardador de todos nós

ó guardador! afasta de mim a tua dor de ver o mundo
nao tenho culpa de que vás tão fundo nessa imensidão
e que transformes todas as coisas em tão profundo
- se abraçasses de vez os sons da vida sem a razão...

ó guardador! celebra comigo as paisagens que vês
todas as sombras são apenas um repouso sem o mal
uma dádiva da natureza a um descanso sem porquês
- onde encostar a cabeça é deixar o sonho ser real...

guarda-te de ti! e não te deixes perder por dentro
olha cá para fora e deixa-te enrolar nessa ilusão
- tudo pode ser diferente se feito com sentimento

guarda-te a ti! no espaço onde tens o coração
abre os braços a tudo excepto ao ferimento
- liberta-te de ser vítima da eterna solidão

(aqui fica um convite)

chuva...















É quando a chuva cai,
é quando olhado devagar que brilha o corpo.
Para dizê-lo a boca é muito pouco,
era preciso que também as mãos vissem esse brilho,
dele fizessem não só a música, mas a casa.
Todas as palavras falam desse lume,
sabem à pele dessa luz molhada.

Eugénio de Andrade

perfume



em cada inalar cumprido
na linguagem erguida pela essência das rosas,
saboreiem o código genético do meu ir.

sintam-no vassalo
do movimento
onde estou passageiro,
com destino ao momento
em que a languidez coordena
o lento fechar dos vossos olhos!

(foto de autor desconhecido)

Tu tão parecida com o vento que rodopia nas almas para se entalar nas frestas da angustia, na luz da escuridão, nos passos imóveis que nunca se dá porque seriam fatalmente motores. Tu que me embalas e me arrastas e em dias de sorte me fazes chorar, como se chorar fosse a ultima hipótese de te ter ao meu lado em cada lágrima, como se cada lágrima fosse um barco possível para regressar a ti, para te chamar ao meu corpo como as sirenes dos navios acordam em estertor em dias de nevoeiros os portos perigosos das paixões. Tu que pouco sabes de ti e que de mim te apartas como se não fosses tu, como se houvesse viagens com retorno, como se fosse possível terminar e determinar aquilo que é infinito porque não morreu.
(...)
será que entendes o enigma que sem saberes sou eu para ti? Será que alguma vez leste na minha pele toda a evidência, ao ponto de te embriagares, de quebrares muros, resistências, análises, trancas, algemas, receios talvez inúteis de brisas talvez fecundas?

Tu que te estatelas agora no céu de cada noite deserta, será que algum dia tornarás a ler o céu no chão? Será que em alguma papelaria escondida na cidade, encontrarei um dia um mapa para te ler sem te sufocar? Tu que me tropeças cada passo, será que tens ainda em ti, o único pulmão que já me fez respirar?

Vivo apenas uma praia oca. Nem areia tem. A primeira duna é árida e semelhante à última. Nada sei de mim. Mas sei quem tu és. És a única pergunta que não formulei. Será que ao menos sabes que eu não sei?

Manuel Cintra

na sombra aguardava...

Tinha o rosto cheio de íntimos silêncios.
E na sombra aguardava o tempo numa
confiança tranquila.
Longínqua, como quem flutua na última claridade e
reflecte nas margens da consciência.
Raramente trazia até si uma palavra, um nervo de luz
ou um rumor vigilante.
Esperava talvez um movimento,
um desejo de espaço.
Ou qualquer outra coisa perdida
no seu pensamento.

Fernando Esteves Pinto

TRÍPTICO (breve estúdio prévio ao auto-retrato)



1.

rendam-se:
tristes contas do rosário
nascido dum par de algemas!

grilhetas evidentes
hálito de derrota.

hirtas estão,
quedam-se mudas,
sem voto de movimento.
no lado de cá. seco.
bem longe de todo o universo
onde as asas vão soar!

2.

voa música!

faz-te ao caminho
da linguagem de um poema.

tinge-me as células
que carregam uma sina prenhe
dos odores onde inalo
o sopro firme deste dia.

o dia da minha ventania!

hora sem retorno,
num movimento crepuscular,
dando o justo momento
ao rito imaculadamente sangrado
nos tons nunca difusos
lavrados em contínuos rasgos.


3.

chamam-lhe palavras.
digo-vos que sou eu!




photo by
Mark Freedom

toque...

É a labareda da seda sob os dedos transmitida ao corpo todo,
seda extraída ao segredo - tocar e ser tocado,
sentir em si a ligeireza do fogo, a profundeza,
e estremecer, ficar em chaga;
e com dedos e sedas manter às labaredas,
entre terror e louvor, a comburente,
combustível composição de tudo:
ser queimado vivo,
ser luminoso.

Herberto Helder

fade into you


I want to hold the hand inside you
I want to take a breath that's true
I look to you and I see nothing
I look to you to see the truth

You live your life, You go in shadows
You'll come apart and you'll go black
Some kind of night into your darkness
Colors your eyes with what's not there

Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew

A stranger's light comes on slowly
A stranger's heart without a home
You put your hands into your head
And then smiles cover your heart

Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew

Mazzy Star

undress my soul...


As janelas
por onde entram as silvas,
a púrpura pisada,
o aroma das tílias,
a luz em declínio,
fazem deste abandono
uma beleza devastadora
e sem contorno.

Eugénio de Andrade

procuro-te...

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque com a forma de um grito de alegria.
Ou a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água
entre o azuldo prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti e o teu nome
ilumina as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre
– procuro-te.

Eugénio de Andrade

OLHARES



a minha pele
exala gotas cor de liberdade.

tinge-me as células
que carregam uma sina prenhe
dos odores da maresia,
num mar cujo sal
é imaculadamente sangrado
nos tons nunca difusos
lavrados nos rasgos de poesia!

foto by Júlio Sousa
www.olhares.com/juliosousa

ausência

Quero dizer-te uma coisa simples: a tua ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não magoa, que se limita à alma; mas que não deixa, por isso, de deixar alguns sinais - um peso nos olhos, no lugar da tua imagem, e um vazio nas mãos. Como se as tuas mãos lhes tivessem roubado o tacto. São estas as formas do amor, podia dizer-te; e acrescentar que as coisas simples também podem ser complicadas, quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade. Porém, é o sonho que me traz a tua memória; e a realidade aproxima-me de ti, agora que os dias correm mais depressa, e as palavras ficam presas numa refracção de instantes, quando a tua voz me chama de dentro de mim - e me faz responder-te uma coisa simples, como dizer que a tua ausência me dói.

Nuno Júdice














Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guia
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva.


José Gomes Ferreira

Nada garante que tu existas

Não acredito que tu existas

Só necessito que tu existas

David Mourão Ferreira






















Dar o outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
oiço pedirem-me que escolha;
e que deixe para trás a inquietação, a dor,
um peso de não sei que ansiedade.

Mas levo comigo tudo o que recuso.

Sinto colar-se às costas um resto de noite;
e não sei voltar-me para a frente,
onde amanhece.

Nuno Júdice

um dia assim...



















Hoje acordámos em sitios diferentes...

Eu, no meio das ruínas que se movem, das sombras que sopram,
das almas em fuga para dentro da vida.


Tu, no meio das ruínas paradas, das sombras que já não respiram,
das almas em fuga para longe da vida.


Amanhã, sempre amanhã, tentaremos acordar no mesmo sítio de sempre
e o abismo do medo e da dor irá rir-se de nós enquanto nos engole ou nos deixa passar.

Fernando Ribeiro

Dei-te a solidão do dia inteiro.
Na praia deserta, brincando com a areia,
no silêncio que apenas quebrava a maré cheia,
a gritar o seu eterno insulto.
Longamente esperei que o teu vulto
rompesse o nevoeiro.

Sophia de Mello Breyner Andresen

diz-me...

as mãos têm de estar vazias para se unirem...?

Que não...

Vestia a alma por fora e paria sonhos por pura teimosia, só porque achava que devia continuar a respirar. Mas os sonhos, também teimosos por mal paridos ou por outros tropeços do caminho, iam-lhe morrendo no vôo e tapando a alma que queria ao sol. Exausta, trocou a última réstea de sonho por um lampejo do futuro que não via.

Agora sim, pode finalmente fingir que nunca existiu.

Presença

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas, teu perfil exacto
e que, apenas, levemente, o vento das horas ponha um frémito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale subtilmente, no ar,
a trevo machucado, as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir como sinto
- em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.

Mario Quintana

SUSSURRO-TE...




ordenam-me as musas
que furte célere às minhas veias
a côr que nelas brota em catadupa.

querem que me sinta na cor do sangue.

desejam-me que vá na corrente
que o transporta até às batidas do coração.
que por lá permaneça,
fazendo do seu ritmoo cântico de sereia
que me encanta no amor.


Se tu me amas,
ama-me baixinho.

Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.

Deixa em paz a mim!

Se me queres,enfim,
.....tem de ser bem devagarinho,
.....amada,
....que a vida é breve,
.....e o amor
.....mais breve ainda.

Mario Quintana

Os ombros suportam o mundo

Os ombros suportam o mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

shiuu...


















As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen

repara...

repara, então... vê essa curva de caminho que se amplia em metáforas carnudas e húmidas... contorna-a com a ponta do dedo, só desse, e alinha-te, torna-te visível nos meus olhos fechados e espírito fremente. deixa então que o meu hálito se torne carne e aprenda contigo os segredos húmidos de sabores que escondes... assim... quando sorris como se nada se passasse. aprendo-te, pois, passo a passo, nas crateras que expões entre sedas e fumos plácidos...

obviamente anónimo

Ocultando mis miedos

Hay veces que el miedo me invade por las noches, se desliza como sombra por las paredes para acariciar con sus dedos helados los sueños que he pintado en ellos.se oculta detrás de ese temblor que recorre mis dientes como agua fría y navega por mis nervios hasta detrás de mis sienes y baja por mi espalda.
Hace recuentos de mis dudas y me muestra retratos de mis pérdidas como repasando una vida que no recuerdo haber vivido riendose de mi sorpresa, mientras mi rostro es una máscara de principe valiente que le sonríe a lo adverso, una Juana de Arco que levanta su espada ante lo inevitable con ojos brillantes.
Intento ocultar las risotadas de mis temores que se me salen por los agujeros de los bolsillos mirando al suelo y la gente me pregunta si yo alguna vez he sentido miedo.

lume



















pernoitas em mim e se por acaso te toco a memória...
amas ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas


é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves


já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes

al berto

REQUIEM II


é a minha mão,
a raiva
que prime a adaga.

corta célere a alma,
rasgando cerce
o ventre da vontade.
para que tudo se apague,
para que nada fique.

para que a morte se cumpra.

protection

Sometimes you look so small,
need some shelter
Just runnin round and round,
helter skelter
And I lean on your fears
Now you can lean on me
An that's more than love
That's the way It should be
Now I can't change the way you feel
But I can put my arms around you
That's just part of the deal
That's the way i feel


I put my arms around you
I stand in front of you
I'll take the force of the blow
Protection

I stand in front of you
I'll take the force of the blow
Protection

Massive Attack

Vago como o AMOR

Embrulhei os olhos para não mais ver:
deixei de lado os meus sonhos e parti.
Sou agora um entre milhões,
acostado e conformado com as coisas.
Destruí todos os meus receios,
encarnei em coisa nova, longe...
todas as crenças se dissiparam,
enquanto me deixo afundar e não resisto.

Deixo-me ir
(letting go)

Já não olho para trás, nem para ver o que foi bom.
Não há causa mais inútil que procurar no vazio.

A preencher os dias,
faço-o com a minha arma principal; a voz que tenho.
Muda.
Ainda há quem a oiça.

O que é o amor, afinal?

(olá amigos)
* - Ilustração feita por mim mesmo.

AUTÓPSIA DA DECADÊNCIA

Não lhe conhecemos a cara, apenas o nome e a desconfortável situação de ter nascido num corpo estranho, coisa que à maioria de nós ultrapassa o sentido.
Nascida Gisberto, deu em Gisberta por opção firme e contrariando o mundo. Talvez tenha sido essa opção que a fez viver a vida que viveu, talvez tenha sido essa que lhe tenha provocado a morte. E não foi uma morte normal, foi violenta, de excessiva violência.
Foi espancada, violentada e atirada a um poço, sabe-se que ainda viva, por um grupo de jovens atiçados por motivações que só a psicologia e a psiquiatria entendem.
Não vou aqui tecer considerações muito vastas acerca do assunto mas vejo-me obrigado a pensar na vítima primeira, a Gisberta e na vítima segunda, a sociedade.
Gisberta morreu. Está morta para sempre, facto incontornável provado pelo corpo analisado na morgue. Os miúdos que cometeram este hediondo crime foram julgados e condenados a penas de semi-internato por períodos de relativa duração, como o são todas as durações e, por fim, a instituição que os abrigava irá ser, ao que parece, objecto de processo.
O que está mal neste panorama?
O que está mal é a forma como se diz a qualquer puto que poderá, a partir de agora, espancar, violentar, assassinar, profanar o cadáver de qualquer transexual, bicha, drogado, preto, arrumador, velho, indigente, sem-abrigo, que a pena não há-de ser grande coisa. É a forma como se diz a qualquer meliante que, de ora em diante, poderá usar crianças para concretizar assaltos e danos, ataques, seja o que for.
O que está mal é ficarmos a saber que a Lei, serva da Justiça, e que deveria ser a garantia de que todos somos, efectivamente, iguais, apenas serve para nos informar que nós, a sociedade, estamos tão mortos como a Gisberta.
Agora vamos todos esquecer Gisberta se é que alguma vez a lembramos. É que ela nunca apareceu na televisão... existirá?
Adeus, Gi.

o que vejo já não se pode cantar

A noite está próxima. O que vejo já não se pode cantar. Caminho com os braços levantados e com a ponta dos dedos ascendo ao firmamento da alma. Espero que o vento passe... escuro, lento. Então, entrarei nele, cintilante, leve... e desapareço.

Al Berto

abismo...

nunca falámos muito. (acho que nunca falámos nada) e nao sinto necessidade de começar agora. o que poderia dizer? existem séculos e séculos de silêncio entre nós e, debaixo dos séculos do silêncio, ocultas lá no fundo, se calhar esquecidas, se calhar presentes, se calhar apagadas, se calhar vivas e a doerem-me, coisas que prefiro não transformar em palavras, coisas anteriores às palavras...

Antonio Lobo Antunes

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