or not


há muito tempo, no começo de uma noite de árvores já despidas, agitadas pelo vento de setembro, imaginei a tua vinda. havia uma indefinida inquietação na natureza, como se estivesse para se aproximar uma grande tempestade, e o horizonte colorira-se de tons assustadores. a electricidade tinha faltado, e havia velas tremelicando sobre as mesas, um certo sentimento de frio que nos fazia aproximar-nos das camas, enrolarmo-nos dentro das camisolas, como se esse fosse o preciso começo de mais um inverno, com tudo o que de irremediavelmente perdido ficava para trás, sobretudo os rostos iluminados pela intensa exaltação da luz. eu aquecia as mãos na fornalha do cachimbo, acariciava as folhas do livro que me tinha acompanhado durante todo esse mês, sentia-me lavado e com uma indescritível paz na alma. pela primeira vez na vida sabia-me completamente entregue a mim próprio, tal como as colinas que vira ao fim da tarde, espalhadas ao sol, amarelas e solitárias, sem qualquer sentido que não fosse multiplicarem-se até aos confins da minha retina, redondas e sempre iguais a si mesmas, perdurando de dia para dia e de século para século.mas, dizia-te, nesse momento prenunciei a tua vinda. julguei mesmo saber quando me chamaste pela primeira vez, talvez num desses muitos sons ambíguos que tem o estalar de uma casa, e me disseste: prepara o caminho para o meu rosto. abre-te de par em par, como se fosses uma enorme folha de uma planta carnívora, distende-te todo como um animal dócil e devorador, apresta-te a teres os meus pés nus sobre o teu peito, os meus lábios elevando-se ao longo do teu sexo como as pétalas de uma flor vermelha de sangue.


assustas-me por me quereres assim, e por te acercares tão inesperadamente neste fim de dia de outono, como se uma nudez indecisa se aproximasse do meu leito sem eu lhe poder definir os contornos do olhar, pensei. sabes, nesta altura do ano os patos bravios migratórios já se encontram todos sobre o lago, e um tal anúncio pode causar-lhes a morte, ou pelo menos uma partida precipitada, e o sangue das suas asas ficar espalhado no meu peito. interrompes um pacto antigo que fiz com esta vida cómoda: a de poder sobreviver em troca de um pouco de ternura, das refeições às horas, do meu cachimbo pousado sobre o estirador, entre a elegância das lombadas dos meus livros, na certeza de estar construindo a obra que esperam de mim. tu vens de súbito tratar-me como um rapaz, abrir-me as cortinas de veludo do teu púbis com um sorriso azul, dizer-me que tudo começa agora, que deixaste crescer os cabelos para mim, e que eles te provocam uma sensação de crina nas nádegas, que queres correr.como pudeste saber que era eu a pessoa certa? e sê-lo-ei? como intentas possuir a minha alma, assim por antecipação? como pudeste adivinhar que atravessei desertos, que no meu palato tenho a secura de cactos cujos espinhos se me enterram nas gengivas quando sorrio? não receias a minha voracidade, este apetite por te sugar toda, desde a saliva ao sangue, esta vontade de morte que me acomete, de te cortar pelo sexo, de te abrir como a um brinquedo, atirando as peças para os quatro cantos do quarto?eu sei, marcaste encontro comigo num qualquer hotel, solitário e frio, onde chegarei sem bagagem e segurando com uma mão de suor o meu cartão de crédito. não teremos música, nem uma chávena de chá, nem interessará se lá fora chove ou se no passeio passa a figura da pessoa que outrora foi minha mãe. é suposto eu ter crescido, e não estou aqui nem para me explicar nem para finalmente te conhecer. estou aqui porque tu me insinuaste que querias possuir o meu olhar, com uma determinação clandestina. não te esqueças de fechas os vidros, porque estamos numa cave, e pode ser que lá fora seja veneza, que as vagas se agitem e venham entornar-se aqui dentro.pode acontecer que a cama se transforme numa jangada e tu consigas matar-me, dar-me descanso no alto mar, quando chegar a hora em que o sol ruboresce as asas dos anjos que trepam, expeditos, às cúpulas das igrejas.partir assim deste sítio terá de ser forçosamente inesquecível.

Vítor Oliveira Jorge

i have a love to kill



ela diz que é o contrário,

que ela não pode esquecê-lo.

que a partir do momento em que

não se passa nada entre eles,

fica a memória infernal

daquilo que não acontece.



Marguerite Duras



prossegue nos gestos não pares
procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto, é certo, mas sei que tu estás aqui.

ruy belo

é quanto basta...


Basta-me que o teu olhar me encontre.

José Rui Teixeira




E vou dizendo lento, como quem tem medo de quebrar a rija perfeição das coisas,
e vou dizendo leve, então, no teu ouvido duro, na tua alma fria,
e vou dizendo leve, e vou dizendo longo sem pausa:

gosto muito de você de você,
muito... de você.


Caio Fernando Abreu

listening





Toda a minha vida me escutaste em silêncio.
Tinhas à disposição as vozes enormes
do vento, das águas, do trovão, do pintassilgo —
mas nunca dei por que as usasses comigo.
Envelheci enredado nas teias dessa mudez.
Ganhei a industriosa astúcia dos velhos
à custa de perder a candura original,
li com cada vez mais desenganada luz
o teu silêncio.
Assim, a princípio achava-o cúmplice,
quente e generoso.
Um silêncio de quem concorda e apoia,
e não acha necessário proclamá-lo.
Com a continuação,começou-me a parecer
o teu silêncio já só condescendência.
O silêncio de alguém que se dispensa de mostrar
desacordo por simples cortesia.

A.M. Pires Cabral

a.m.o.r



talvez nunca tenha entendido a minha maneira de amar ou talvez nunca tenha tido uma maneira de amar ou uma única maneira de amar – talvez nunca tenha sabido o amor de uma maneira – a forma e a proporção a geometria – mas estou certo que amei sempre tarde demais ou num cedo incerto de tanta impossibilidade de me encontrar amando seja o que for o amor.

Frederico Mira George

touch...



Touch me.
Soft eyes.
Soft soft soft hand.
I am lonely here.
O, touch me soon, now.
What is that word known to all men?
I am quiet here alone.
Sad, too.
Touch, touch me...

Ulysses James Joyce

Peter Murphy

Bauhaus



- Sim – digo-te, pousando as mãos nos teus joelhos - Desejo encontrar alguém que me ame com bondade, e saiba ler.

-Alguém que queira ressuscitar para ti?

- Sim, alguém que tenha para comigo essa memória. Alguém que deixe espaços entre as palavras para evitar que a última se agarre à próxima que vou escrever. Alguém que admita que a cartografia dos animais e da pontuação não está ainda estabelecida.Alguém que eu possa ler diferentemente depois de me ler. Alguém que dirá aos animais e às plantas que nem sempre serão servos. Alguém que ao nos amarmos se reconheça de matéria estelar.


Maria Gabriela Llansol

deep ocean vast sea



Andava às voltas no topo de si mesmo e do monte.Trepara a encosta como em pequeno trepava às árvores:para ver melhor.Vivia tão longe da água que tinha a boca seca. Agora andava às voltas cheio de sede a esgotar-se, a suar: -Porque não paras?, perguntar-lhe-ia, se pudesse entrar neste poema. Não havia nada no cimo de si nem do monte- apenas o azul e algumas aves que respiram mais alto. A cidade ficava a meio caminho entre o céu e a terra(o céu lá para cima, ainda depois do monte,a terra cá para baixo, um pouco antes da sede). Ele andava às voltas com a vida: atirava-lhe pedras, gritava (se ao menos a chuva! se ao menos a chuva!) como quem não encontra. Só mais tarde entendi o que procurava - um mar.

Filipa Leal


Your ocean heart, clothed in respect and sweet caress my uneasy mind
You dip and you swell, float and you find and sweet caress my uneasy mind
Deep ocean. Vast sea
Deep ocean. Vast sea... that's me
Imagine a set of steps easily climbed to the power of pride, the plastic of mind...
Where there lies a table... the table stands for the power of success, respect on the sign.
Intelligence so cold. A heart like glass from the surface to deep
You wave then you dive like the heart and the sun
You wave and you dive. You hold me so cold. You wave and you dive
Deep ocean. Vast sea
Deep ocean. Vast sea... that's deep
You're clothed in respect. You smell of sweet caress. Dip and swell
Beyond the power fo fists, your ocean heart healing uneasy minds
And I wanna dive in with you, clinging to the rock, I'm waiting
Deep ocean. Vast sea
Deep ocean. Vast sea... that's deep
Your heart is hard. You think your legs hurt. You smell of aching sweet success
Your head's a supernova and you would like anything to stop the pain from your finger screaming
There you stand, naked in the sun without leather
Whose pain you think you need, but all you need to do is undress, let go and wash
Take the steps to the other side. Up-turned razors the air is thick with karma
The sutra of a way down. Listen boy, it's a long way down... down to heaven's gate
To heaven gate the steps the steps to the tower of pride
The devil lied. Dive up to the highest point, where our lives are saved
Where all the lives on the table stand
Power and success respect and climb the steps
Peter Murphy