tocas-me?


Claro que se tem medo que alguém nos entre pelos olhos. Mas podes arder. Para a tua temperatura sou mercúrio, linhas de mão, lábio e sopro. Atravesso-te porque me atravessas e onde somos corsários rendemo-nos ao encanto da devolução.Tu e eu à porta de um lugar que vai fechar, tudo numa árvore. Aqui onde os minutos são a rua em que nos sentamos toda a tarde à espera do silêncio, onde o teu corpo pesa a medida exacta do meu desejo. Sou um animal. Necessito diariamente da transfusão de uma enorme quantidade de calor. Tocas-me?

Vasco Gato

Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles a boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia. Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder ás cortinas o dom de sombrear. Pegar então num objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar num livro uma página estrategicamente aberta. Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza. Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra que te quer. Soprá-la para dentro de ti até que a dor alegre recomece.


Maria Gabriela Llansol





«Paga-me um café e conto-te a minha vida»

o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu, não, nunca choraste
por amores que se perdem

os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
E temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois

«Pago-te um café se me contares
o teu amor»

José Tolentino de Mendonça



Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria.

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros.

Olha
como só tu sabes olhar
a rua
os costumes

(...)

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso.

Mário Cesariny

if only...



...tivesses tu pousado a mão sem medo
nos meus lábios gretados de palavras
e amado em mim o amor que nos confunde...
um mínimo detalhe diferente
traria a cada coisa um outro eco.


António Franco Alexandre

Tonight you just close your eyes and I just watch you...


...slip away...
The National-About Today

Tell me now how should I fell

Vou entreabrir a cortina e olhar a lua. Sopros de esquecimento acalmam a minha agitação. A porta abre-se. O tigre salta. O terror entra. Terror e mais terror, perseguindo-me. Visitarei às escondidas os tesouros escondidos na minha solidão. Do outro lado do mundo há colunas de mármore reflectidas em lagos. A andorinha roça com as asas a superfície de lagos sombrios. Mas aqui a porta abre-se e entra gente. Vêm na minha direcção. Sorriem levemente para esconder a crueldade e a indiferença e apoderam-se de mim. A andorinha roça a superfície do lago e a lua solitária percorre mares azuis. Devo estender-lhe a mão; responder. Mas que resposta dar? Retrocedo com violência, sentindo escaldar o corpo desajeitado e exposto à indiferença e ao desdém dos homens, eu que imagino colunas de mármore e lagos onde as andorinhas molham as asas do outro lado do mundo. A noite adensou-se um pouco mais sobre as chaminés. Olhando sobre o ombro deste homem, vejo através da janela um gato tranquilo, que nenhuma luz ofusca e nenhuma seda tolhe. Um gato livre de parar, espreguiçar-se e recomeçar a andar. Odeio os pormenores da vida individual. Mas aqui sou obrigada a escutar. Um enorme peso me oprime. Não posso mover-me sem carregar o peso de séculos. Sou trespassada por um milhão de flechas. Sinto-me atingida pelo ridículo. Eu que seria capaz de expor o peito às tempestades e de me deixar alegremente cobrir pelo granizo, estou imobilizada.
Virginia Woolf