ao guardador de todos nós

ó guardador! afasta de mim a tua dor de ver o mundo
nao tenho culpa de que vás tão fundo nessa imensidão
e que transformes todas as coisas em tão profundo
- se abraçasses de vez os sons da vida sem a razão...

ó guardador! celebra comigo as paisagens que vês
todas as sombras são apenas um repouso sem o mal
uma dádiva da natureza a um descanso sem porquês
- onde encostar a cabeça é deixar o sonho ser real...

guarda-te de ti! e não te deixes perder por dentro
olha cá para fora e deixa-te enrolar nessa ilusão
- tudo pode ser diferente se feito com sentimento

guarda-te a ti! no espaço onde tens o coração
abre os braços a tudo excepto ao ferimento
- liberta-te de ser vítima da eterna solidão

(aqui fica um convite)

chuva...















É quando a chuva cai,
é quando olhado devagar que brilha o corpo.
Para dizê-lo a boca é muito pouco,
era preciso que também as mãos vissem esse brilho,
dele fizessem não só a música, mas a casa.
Todas as palavras falam desse lume,
sabem à pele dessa luz molhada.

Eugénio de Andrade

perfume



em cada inalar cumprido
na linguagem erguida pela essência das rosas,
saboreiem o código genético do meu ir.

sintam-no vassalo
do movimento
onde estou passageiro,
com destino ao momento
em que a languidez coordena
o lento fechar dos vossos olhos!

(foto de autor desconhecido)

Tu tão parecida com o vento que rodopia nas almas para se entalar nas frestas da angustia, na luz da escuridão, nos passos imóveis que nunca se dá porque seriam fatalmente motores. Tu que me embalas e me arrastas e em dias de sorte me fazes chorar, como se chorar fosse a ultima hipótese de te ter ao meu lado em cada lágrima, como se cada lágrima fosse um barco possível para regressar a ti, para te chamar ao meu corpo como as sirenes dos navios acordam em estertor em dias de nevoeiros os portos perigosos das paixões. Tu que pouco sabes de ti e que de mim te apartas como se não fosses tu, como se houvesse viagens com retorno, como se fosse possível terminar e determinar aquilo que é infinito porque não morreu.
(...)
será que entendes o enigma que sem saberes sou eu para ti? Será que alguma vez leste na minha pele toda a evidência, ao ponto de te embriagares, de quebrares muros, resistências, análises, trancas, algemas, receios talvez inúteis de brisas talvez fecundas?

Tu que te estatelas agora no céu de cada noite deserta, será que algum dia tornarás a ler o céu no chão? Será que em alguma papelaria escondida na cidade, encontrarei um dia um mapa para te ler sem te sufocar? Tu que me tropeças cada passo, será que tens ainda em ti, o único pulmão que já me fez respirar?

Vivo apenas uma praia oca. Nem areia tem. A primeira duna é árida e semelhante à última. Nada sei de mim. Mas sei quem tu és. És a única pergunta que não formulei. Será que ao menos sabes que eu não sei?

Manuel Cintra

na sombra aguardava...

Tinha o rosto cheio de íntimos silêncios.
E na sombra aguardava o tempo numa
confiança tranquila.
Longínqua, como quem flutua na última claridade e
reflecte nas margens da consciência.
Raramente trazia até si uma palavra, um nervo de luz
ou um rumor vigilante.
Esperava talvez um movimento,
um desejo de espaço.
Ou qualquer outra coisa perdida
no seu pensamento.

Fernando Esteves Pinto

TRÍPTICO (breve estúdio prévio ao auto-retrato)



1.

rendam-se:
tristes contas do rosário
nascido dum par de algemas!

grilhetas evidentes
hálito de derrota.

hirtas estão,
quedam-se mudas,
sem voto de movimento.
no lado de cá. seco.
bem longe de todo o universo
onde as asas vão soar!

2.

voa música!

faz-te ao caminho
da linguagem de um poema.

tinge-me as células
que carregam uma sina prenhe
dos odores onde inalo
o sopro firme deste dia.

o dia da minha ventania!

hora sem retorno,
num movimento crepuscular,
dando o justo momento
ao rito imaculadamente sangrado
nos tons nunca difusos
lavrados em contínuos rasgos.


3.

chamam-lhe palavras.
digo-vos que sou eu!




photo by
Mark Freedom

toque...

É a labareda da seda sob os dedos transmitida ao corpo todo,
seda extraída ao segredo - tocar e ser tocado,
sentir em si a ligeireza do fogo, a profundeza,
e estremecer, ficar em chaga;
e com dedos e sedas manter às labaredas,
entre terror e louvor, a comburente,
combustível composição de tudo:
ser queimado vivo,
ser luminoso.

Herberto Helder

fade into you


I want to hold the hand inside you
I want to take a breath that's true
I look to you and I see nothing
I look to you to see the truth

You live your life, You go in shadows
You'll come apart and you'll go black
Some kind of night into your darkness
Colors your eyes with what's not there

Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew

A stranger's light comes on slowly
A stranger's heart without a home
You put your hands into your head
And then smiles cover your heart

Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew

Mazzy Star