Interpol - Narc



Três fósforos... um a um acesos na noite

O primeiro para ver o teu rosto inteiro

O segundo para ver os teus olhos

O terceiro para ver a tua boca

E toda a escuridão para recordar tudo isso
Apertando-te nos braços

Jacques Prévert

Florence and the Machine - Falling



Antes a vida que estes prismas sem espessura mesmo se as cores são mais
puras
Antes ela que esta hora sempre enevoada estas terríveis carruagens de
labaredas frias
Estas pedras sorvadas
Antes este coração engatilhado
Que este charco de murmúrios
Este pano branco a cantar ao mesmo tempo na terra e no ar
E esta benção nupcial que une o meu rosto ao da total fatuidade
Antes a vida

Antes a vida com os seus lençóis de esconjuro
As suas cicatrizes de fugas
Antes a vida antes esta rosácea no meu túmulo
A vida da presença só da presença
Onde uma voz diz Estás aí outra responda Estás aí
Eu pobre de mim não estou
E mesmo quando jogarmos ao que fazemos morrer
Antes a vida

Antes a vida antes a vida infância venerável
A faixa que parte dum faquir
Parece o escorregadouro do mundo
Não importa que o sol não passe de um destroço
Por pouco que o corpo da mulher se lhe compare
Pensas tu ao contemplar a extensão da trajectória
Ou tão-só ao fechar os olhos sobre a tormenta adorável que se chama a tua
mão
Antes a vida

Antes a vida com as suas salas de espera
mesmo sabendo não ir entrar nunca
Antes a vida que estas estâncias termais
Onde o serviço é feito por coleiras
Antes a vida adversa e longa
Quando aqui os livros se fecharem sobre estantes menos suaves
E lá longe fizer mais que melhor fizer livre sim
Antes a vida

Antes a vida como fundo de desdém
A esta cabeça já de si tão bela
Como antídoto da perfeição aspirada e temida
A vida a maquilhagem de Deus
A vida como um passaporte virgem
Ou uma vilória como Pont-à-Mousson
E como tudo foi dito já
Antes a vida

André Breton



Não fugir.
Suster o peso da hora
sem palavras minhas e sem os sonhos,
fáceis, e sem as outras falsidades.
Numa espécie de morte mais terrível
ser de mim despojado, ser
abandonado aos pés como um vestido.
Sem pressa atravessar a asfixia.
Não vergar. Suster o peso da hora.
Até soltar sua canção intacta.


Cristovam Pavia

Dizer um corpo. Onde nenhum. Mente nenhuma. Onde nenhuma. Ao menos isso. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar lá dentro. Mover-se lá dentro. E sair. E voltar lá para dentro. Não. Sair nenhum. Voltar nenhum. Só entrar. Ficar lá dentro. Em diante lá dentro. Parado.


Samuel Beckett



Tem de se conter a respiração
até que o vento amaine
e o ar desconhecido nos comece a envolver,
até que o jogo de luz e sombra,
...de verde e azul,
nos mostre as estruturas antigas
e estamos em casa,
seja onde for.

Hilde Domin

Aqui ninguém te ouve
Não te esqueças que o vento ajuda a voar
Henrique Risques Pereira




Por uma vez conta como o corpo se ajusta à superfície
das tuas palavras. Fala de um depois anterior, desse sono
demente na fissura da luz; do violento voo ou da ferida
cíclica, a ausência excedendo-se na pele quando a desoras
perfumas minhas mãos. Estende-se o calor aos lábios,
o Verão simula a duração no verso, circula a água, vigorosa,
no fundo do poço até desaparecer na cama muda.
Nada é o que parece, lembra-se o que se esquece e eu digo
os dedos descalços dissolvem em tua boca o mel à flor dos
destroços.
Olha-me: deita o olhar em meu vestido, tira-o
num gesto ébrio e precipitado como a um prisioneiro,
os peixes sobem lestos no lago imoderado e a noite volta,
lenta, adormecida.
Dou-te o que não tenho – a história
de um rio exultante a explodir na boca em versão romântica,
poema sem trágicos sulcos ou fala completa.
E tu, tu dás-me
o que sou: metáfora doendo-se alto onde acaba o texto.

Ana Marques Gastão

Voltemos a isto, ao cálculo dos danos
na máquina do mundo, à impotência do riso
contra tudo o que não sabemos mudar:
a morte, o egoísmo, o levadiço coração
humano. Porque não há mais nada (ok,
há o amor – vai-te foder) e nos negócios
da razão o pessimismo é a moeda
do momento. Regressemos ao ruído,
à sombria comissão liquidatária
desta fábrica de trapos coloridos.
Se não há melhor emprego para a culpa
e os domingos custam dias a passar.


José Miguel Silva

volto já



Que silêncio tão grande. No interior do silêncio mais silêncio e no interior do mais silêncio um relógio minúsculo a anunciar
– Já é tarde, já é tarde
de forma que nem reparamos nos ponteiros. Para quê se o relógio insiste
– Já é tarde, já é tarde
e nós a olharmos uns para os outros, inquietos
– O que diz o relógio?
apesar de termos ouvido perfeitamente a sua vozinha apressada, nós de súbito com medo
– Tarde?
e o que significa tarde meu Deus, o que pretende o relógio? Mesmo tapando as orelhas com as mãos a teimosia permanece
– Já é tarde
mesmo não escutando mais nada escutamos o
– Já é tarde
não sabemos se no relógio se no interior da gente, olhamos em volta, olhamos para dentro à procura, achamos episódios antigos, um triciclo, um avô a espantar-se
– O que tu cresceste
um colar de pérolas
(de quem?)
numa tacinha, achamos a nossa vida de hoje e qual o sentido da nossa vida de hoje, o que fazemos com ela, dias atrás de dias, o supermercado, o jantar no restaurante aos domingos, a maçada das crianças às vezes e não era bem isto que nos apetecia, não era bem isto o que tínhamos desejado, falta qualquer coisa, onde é que errámos, o que falhámos, não somos infelizes mas também não temos o que secretamente ansiávamos, os anos vão passando ...


... (– o que tu cresceste)
e não temos o que secretamente ansiávamos, de vez em quando momentos tão vazios, de vez em quando, mesmo no meio dos outros, uma solidão tão grande, um desamparo, uma sensação de queda, esta dificuldade em respirar, porque a mobília sufoca, que vem e desaparece e volta, de vez em quando, sem motivo, vontade de chorar, não lágrimas grandes, não soluços, uma coisa vaga, uma pergunta
– E agora?
sem resposta, caras familiares que se tornam estranhas, se te abraçar continuo sozinho, o que se passa comigo, o que se passa connosco, o relógio prossegue
– Já é tarde
monótono, acusador, implacável, os objectos quietinhos sem nos ajudarem
– Porque não nos ajudam?
Nada nos ajuda, é tarde, tentamos conversar e é tarde, fazemos amor e é tarde apesar de termos feito amor na esperança que não seja tarde e depois, em lugar do prazer, ou misturado com o prazer, ou mais forte que o prazer, uma espécie de amargura que persiste, se não dilui, persiste, o
– E agora?
sem resposta aumenta, um
– E agora?
imenso, que horror, um
– E agora?
que nos preenche inteiros, se nos pegassem ao colo, fugissem connosco, nos garantissem
– Não é tarde ainda
e pudéssemos acreditar que não é tarde ainda, tranquilizar-nos afirmando
– Não é tarde ainda
embora cientes que mentimos
– Não é tarde ainda
e tornar a mentira verdade, que outra coisa fizemos para além de tentarmos transformar as mentiras em verdades, não há ninguém mais crédulo que um desesperado
– O que tu cresceste
e em que direcção cresci que não dou por ter crescido, lá está o triciclo, lá está o avô, lá está o colar, os frascos de perfume que cheirávamos às escondidas, os cigarros que fumávamos secretamente no quintal, cresci para onde, cresci como, se nos metermos no carro, se almoçarmos fora, se te pegar na mão melhoramos e contudo ficamos parados a teimar no silêncio
(que silêncio tão grande)
– Já é tarde
e não é o relógio, somos nós
– Já é tarde
não noite ainda e contudo tão tarde, aproximamo-nos da janela, os prédios do costume na rua
(esperavas outros prédios, outro bairro?)
e tão tarde, ganas de apanhar aquele cinzeiro e quebrá-lo no chão, de que serve apanhar aquele cinzeiro e quebrá-lo no chão, no espelho a nossa cara
– O que tu cresceste
diferente, a nossa cara e diferente, porquê diferente, o que é isto nos olhos, o que é isto na boca, a boca a ecoar
– Tarde
tal como os olhos ecoam
– Tarde
todo o corpo a afirmar
– Tarde
e quando o
– Tarde
diminui, o
– E agora?
a dilatar-se nele, o
– E agora?
imenso, sentamo-nos no sofá com uma revista, o jornal, um livro e as mãos vazias, apertamo-las uma na outra, espreitamos o triciclo, a certeza que se pedalássemos muito depressa não seria tarde, pedalar mais depressa que o relógio, os episódios antigos, aquela parente que nos oferecia rebuçados cujo papel não descolava e se nos prendia aos dentes, tentávamos retirar o papel com a unha e não saía, ainda nos lembramos do gosto do papel na língua, largamos a revista, o jornal, o livro, e ficamos no sofá, tanto tempo passado, com o papel na língua, a mastigá-lo, a mastigá-lo, a mastigá-lo, no fundo da gente nós mesmos a acusarmo-nos
– Porque me tornaste nisto?
o silêncio aumentou tanto que o relógio se calou, uma palma no nosso ombro
– O que foi?
e construímos peça a peça um sorriso difícil
(custa tanto um sorriso)
que responde por nós
– Não foi nada.

António Lobo Antunes


parfois...



Precisava falar-te ao ouvido.
De manter sobre a rodilha do silêncio
a escrita.
Precisava dos teus joelhos.
Da tua porta aberta.
Da indigência. E da fadiga.
Da tua sombra sobre a minha sombra.
E da tua casa
E do chão.

Daniel Faria

Nick Cave - Shoot Me Down



Quem me quiser há-de saber as conchas
a cantigas dos búzios e do mar.

Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.

Quem me quiser há-de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
à saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.

Quem me quiser há-de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.

Quem me quiser há-de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.

Quem me quiser há-de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente

- Ou então não saber coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.

Rosa Lobato de Faria



sótão:
era ali que o mundo começava.

Ainda não sabias, então,
quantas letras te seriam
necessárias para soletrar
o alfabeto dos dias, para encher
a tua caixa de música, a tua concha
de areia.

E ainda
o não sabes hoje.

Com cinza
nada se escreve a não ser
as vogais do silêncio.

E este
é o nome que se dá à ausência,
quando a noite e a poeira
dos astros pousam
sobre a ranhura dos olhos.

Albano Martins

Como um respirar


Enfim temos
as duas mãos cheias de luz –
as estrofes da noite, as agitadas
águas batem de novo nas orlas
da margem, no sono cru,
sem olhos, dos animais no canavial
depois do abraço – então
voltamo-nos para a encosta
lá fora, contra o céu
branco que desce
frio sobre o
monte, a cascata de brilhos,
e cristaliza, gelo,
como caído de estrelas.

Na tua fronte
quero viver o pequeno
tempo, esquecido,
deixar passar silencioso
o meu sangue pelo teu coração.

Johannes Bobrowski




Me miras, de cerca me miras, cada vez más de cerca y entonces jugamos al cíclope, nos miramos cada vez más de cerca y nuestros ojos se agrandan, se acercan entre sí, se superponen y los cíclopes se miran, respirando confundidos, las bocas se encuentran y luchan tibiamente, mordiéndose con los labios, apoyando apenas la lengua en los dientes, jugando en sus recintos donde un aire pesado va y viene con un perfume viejo y un silencio. Entonces mis manos buscan hundirse en tu pelo, acariciar lentamente la profundidad de tu pelo mientras nos besamos como si tuviéramos la boca llena de flores o de peces, de movimientos vivos, de fragancia oscura. Y si nos mordemos el dolor es dulce, y si nos ahogamos en un breve y terrible absorber simultáneo del aliento, esa instantánea muerte es bella. Y hay una sola saliva y un solo sabor a fruta madura, y yo te siento temblar contra mí como una luna en el agua.

Julio Cortázar

The Temper Trap - Sweet Disposition

Ceci est mon cœur


Eu quero um colo, um berço, um braço quente em torno ao meu pescoço, uma voz que cante baixo e pareça querer me fazer chorar. Eu quero um calor no inverno, um extravio morno de minha consciência e depois sem som, um sonho calmo, um espaço enorme, como a lua rodando entre as estrelas.


Bernardo Soares

C'est un bon cœur.


I took a deep breath
and listened to the old bray of my heart.
I am.
I am.
I am.

Sylvia Plath


É tão difícil guardar um rio
quando ele corre
dentro de nós.

Jorge Sousa Braga

The Divine Comedy - There Is A Light That Never Goes Out



Se te pergunto o caminho,
falas-me das rochas que mortificam o dorso das montanhas;
e do ranger da água no galope dos rios;
e das nuvens que coroam as paisagens.

Contas que a noite geme nas fendas dos penhascos
porque as cidades apodrecem junto às margens;
que o vento é um chicote que desaba os chapéus;
que a terra treme, que o nevoeiro cega;
e que as casas onde o medo se extinguia na longa bainha do
vestido da mãe cederam ao peso das mágoas dentro delas.

E, se assim mesmo quero ir, dizes que os meus passos
se perderiam no comprimento das sombras – que não há
mapas para os sonhos de quem morre de amor;
e que os ramos debruçados dos muros em ruínas rasgariam
a carne – como um sorriso rasga o tecido de um rosto.

Se não me amas, porque me avisas da dor?


Maria do Rosário Pedreira



Uma mão quente.
Uma casa quente.
Um pullover quente
para cobrir meus pensamentos gelados.
Um corpo quente
para cobrir o meu corpo.
Uma alma quente
para cobrir a minha alma.
Uma vida quente
para cobrir a minha vida gelada.

Sonia Åkesson


Passo o teu nome da minha boca para este lugar de papel.
E assim tu vens, menina do rio, louca e desastrada,
nessa tua canoa de silêncios, a entrar no poema.
Mãos em existência felina e respirando sem pausas.
Voltas a cabeça para o lado da luz e abre-se devagar
o talento incendidado do teu rosto.
(...)

Se existe uma chave,
se existe uma chave que não derreta na boca,
se existe uma boca capaz de se abrir para outra boca,
então eu amo,
eu beijo,
eu deixo de esperar.

Então tu saltas e arrastas contigo toda a terra.
Convidas-me para o teu corpo no gesto
sem mágoa
de um ombro que se expõe.
Tens anos de combustão solar, e moves-te assim:
tocando simultaneamente o resgate e o perigo.

Ah forte como a loucura é o amor,
o amor como a electricidade dos campos.
O amor-pirâmide, o amor-trevo-de-quatro-folhas,
o amor-moeda-achada-no-chão.
Não digas sorte, diz privilégio.
Não peças perdão, pede chuva.
Não recues, assombra-te.
(...)

A minha alegria é um aroma de tangerina nos dedos,
comer aos gomos a paisagem e limpar depois
a boca à manga do espanto.

Tu puxas-me e somos duas crianças num trilho de mata,
num banco de pedra, num portão verde
dividindo o aqui e o ali.
Porque nós estamos aqui.
Aqui onde te entrego os meus bolsos,
e - repara - as tuas mãos cabem.

Nós estamos aqui.

Menina do rio na tua canoa de silêncios, a tua voz
enrola-se na minha voz como prédios e sombra numa cidade,
como leite e açúcar na infância, como o destino de um navio.
Atravesso quilometricamente a pobreza deste reino para te ver,
para te ver uma bússola de neve, uma corda vermelha,
a destreza de um telhado através dos dias.

Tu não precisas falar uma outra língua,
o persa é uma língua que nos chega!
Tu não precisas oferecer-me portas e milhares de portas,
basta que apareças.
Que apareças nesta fogueira de bruxas,
na inquisição canina de uma época longe, muito longe,
dolorosamente longe da magia de um homem e de uma mulher.

Nós estamos aqui para arder pelo nosso corpo completo.
Tu e eu, leões estirados ao sol,
harpa para os nossos dedos quentes,
poema numa sala de lâminas.

Nós estamos aqui para fugir,
nós estamos aqui para chegar de vez.

Vasco Gato

that´s why I hold you...

Seulement et rien de plus


Confortamo-nos com histórias laterais,
evitamos o toque, há risco de contágio;
por mais que preservemos a franqueza
passou o estágio já da frontal alegria:
estamos bem, obrigada,
embora aquém
de antes -
entretanto admitimos não
saber, e enquanto resta isto indefinido,
mesmo com luvas, pinças de parafina,
não sondamos mais, sob pena de crescer
um quisto nesse incisivo sítio, onde
achámos, sem tacto que menos doía

Margarida Vale de Gato








Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes

o ausente



Sophia de Mello Breyner


The National - Bloodbuzz Ohio



A noite penetra-nos
através dos acidentes que temos
infligido um ao outro.

A próxima vez que perpetremos
o amor, temos que
decidir primeiro quem vamos matar.

Margaret Atwood

Warpaint-Billie Holiday (album version)



Meus olhos não fabricam a realidade ou tu. Meus olhos não fabricam mas encontram. Silêncio no teu olhar, na tua boca. Em tua língua primitiva o mar se olha. É o deserto e falas, boca brusca de ignorado alento.

Não te construo, constróis-me, construo-te. Construo-te, mar. Aqui onde o sol se acende em carne,onde a casa é um nome de mar,e os frutos e os espelhos amadurecem o corpo solidário. Aqui tu és lenta verdade no sossego do sangue: circulação de nomes e de peixes.

Esta ciência de inocência e água se toco, delicado, ou pão ou página,ou corpo, ou fruto, ou verde folha, este pisar que é duro e leve, a frescura e a sombra, o ar, a luz.Tudo me dás.Tudo te dou. Tudo nos damos.

E a terra mais próxima e as ervas e os bichos translúcidos entre pedras, a serena eclosão dos nomes, cabeleira sobre o corpo fresco, intenso e nu. Verdade ainda mais próxima dos tranquilos campos. Paz que se alonga às searas por um corpo amado, renhidamente amado entre a verdura na noite de estrelas claras e estáticas.

Sobrio
o teu corpo me pede penetração, nomes puros: os de boca, braços, mãos sobre a terra e sobre os muros.
Sobrio
o teu corpo me pede nomes justos, nomes duros: os da terra, fogo e punhos, claros, acres, escuros.

António Ramos Rosa


Eles olhavam e não a viam.
Ela fazia mais sombra do que existia.

Clarice Lispector


O seu drama não era o drama do peso, mas o da leveza.
O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser.
Milan Kundera




Não basta estender as mãos vazias para o corpo mutilado,
acariciar-lhe os cabelos e dizer: Bom dia, meu Amor.
Parto amanhã.

Não basta depor nos lábios inventados a frescura de um beijo
doce e leve e dizer: Fecharam-nos as portas. Mas espera.

Não basta amar a superfície cómoda, ritual, exacta nos con-
tornos a que a mão se afeiçoa e dizer: A morte é o caminho.

Não basta olhar a Amante como um crime ou uma injúria
e apesar disso murmurar: Somos dois e exigimos.

Não basta encher de sonhos a mala de viagem, colocar-lhe as
etiquetas e afirmar: Procuro o esquecimento.

Não basta escutar, no silêncio da noite, a estranha voz dis-
tante, entre ruídos de música e interferências aladas.

Não basta ser feliz.

Não basta a Primavera.

Não basta a solidão.

Daniel Filipe

path


Talvez não saibas por onde se pode passar para o outro lado; não pela ponte , que está fechada para quem apenas leva a imaginação: mas por um caminho que junta quem olha, de ambos os lados, as nuvens de chuva que o mar empurra para terra.

É um caminho com as cores de um arco-íris. As suas pedras fazem doer a alma, mais do que os pés; e se um de nós pega numa dessas pedras para a meter no bolso, ela desfaz-se, como se fosse areia.

Encontramo-nos a meio da travessia, num lugar em que olhamos para os dois lados de onde cada um de nós partiu. E os dois lados são iguais, com as mesmas árvores e as mesmas casas. Mas falas-me de uma sensação de distância que, apesar de estarmos juntos, trazemos connosco.

Também os caules crescem sem nunca se encontrarem; e se o ventos os empurra, cada um segue uma direcção diversa. por isso, não nos vemos, neste fim de tarde, nem ouvimos o que temos para nos dizer.

Para quê, então, atravessar as pontes abstractas que nos levam uns em direcção aos outros? Que distâncias se podem evitar quando julgamos que os seres coincidem no instante de um olhar?

Nuno Júdice



Que rompam as águas:
é dum corpo que falo.

Nunca tive outra pátria,
nem outro espelho,
nem outra casa.

É dum rio que falo,
desta margem onde soam ainda,
leves,
umas sandálias de oiro e de ternura.

Aqui moram as palavras;
as mais antigas,
as mais recentes:
mãe, árvore,
adro, amigo.

Aqui conheci o desejo
mais sombrio,
mais luminoso,
a boca
onde nasce o sol,
onde nasce a lua.

E sempre um corpo,
sempre um rio;
corpos ou ecos de colunas,
rios ou súbitas janelas
sobre dunas;
corpos:
dóceis, doirados montes de feno;
rios:
frágeis, frias flores de cristal.

E tudo era água,
água,
desejo só
dum pequeno charco de luz.

De luz?
Que sabemos nós
dessas nuvens altas,
dessas agulhas
nuas
onde o silêncio se esconde?
Desses olhos redondos,
agudos de verão,
e tão azuis
como se fossem beijos?

Um corpo amei,
um corpo, um rio,
um pequeno tigre de inocência,
com lágrimas
esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas,
arrefecidas
primaveras nas mãos.

Quem não amou
assim? Quem não amou?
Quem?
Quem não amou
está morto.

Piedade,
também eu sou mortal.
Piedade
por um lenço de linho
debruado de feroz melancolia,
por uma haste de espinheiro
atirada contra o muro,
por uma voz que tropeça
e não alcança os ramos.

Dum corpo falei:
que rompam as águas.

Eugénio de Andrade



dá-me algo mais que silêncio ou doçura
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra

não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz

dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!

carlos edmundo de ory



porque hoje a noite me parece uma invenção em aberto
sobre a cama abandono palavras

tenho o tempo nas pálpebras
assim, quando alguém me perguntar pelo sentido da insónia

eu, parada no meio do quarto,
direi que não sabia que na solidão se grita alto
para sobreviver ao medo

Maria Sousa



O que é certo é que gostei de ti.
O resto não: se exististe, e se assim foi,
qual a cor dos olhos, ora verdes
ora cinzentos, deles levantou-se uma vez
um bando de andorinhas. Quais. As rápidas,
as que não andam, as que se amam no ar.
Como foi. Ficaste doente ou coisa assim,
levaram-te, muito se passou,
acho que ia ter outro filho e esqueci-me de ti
até ouvir-te, esta noite, a horas impossíveis,
- vem comigo, é tempo. Larga tudo e sai,
espero por ti ao pé da cancela.
Mas cheguei lá e o trinco
estava solto, batia ao vento
contra o poste, fechei-o, voltei para trás,
a pensar em ti, que estiveste lá,
sabe-o Deus, que abriste a cancela,
que gostei de ti e também
que a porta não encaixava bem.

Eva Gerlach

Acordar

Assim ficamos a conhecer mulher que mais tarde saberemos chamar-se Arminda, e a sua filha Elisabete

Após um violento ataque de tosse, baba e ranho, arquejante ainda, dispara as primeiras palavras que já tardavam nesta história, «Foda-se pró caralho!». Procura os óculos e coloca-os nervosamente na cara, olha em volta e vê Elisabete na porta, dinossauro ao lado, que a fixa curiosa, olha para o alto e vê a trave do tecto quebrada a meio e fica ali parada, no que parece uma reflexão. Olha uma vez mais a trave e exclama «Puta que pariu!».

dos dias



Podemos ser como bonecas de corda
e olhar para o mundo com olhos de vidro
e jazer durante anos entre rendas e lantejoulas
o corpo recheado de palha
dentro de uma caixa de feltro
e a cada toque de luxúria
gritar sem nenhuma razão
Ah, que feliz sou!

Forugh Farrokhzad



Estendi a mão por qualquer coisa inocente
uma pedra, um fio de erva, um milagre
preciso que me digas agora
uma coisa inocente

Não uses palavras
qualquer palavra que me digas há-de doer
pelo menos mil anos
não te prepares, não desejes os detalhes
preciso que docemente o vento
e longínquo e o próximo
espalhe o amor que não teme

Não uses palavras
se me segredas
aquilo que no fundo das nossas mentiras
se tornou uma verdade sublime.

José Tolentino Mendonça

and i'll mirror images back at you, so you can see the way i feel it too ...


mas a ti
quero olhar-te
até estares longe do meu medo
Alejandra Pizarnik

Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer pelo menos não fui tolo e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

Clarice Lispector

da ausência



De veres o meu lugar.
De me veres só apagando a luz do quarto
cada noite no escuro a respirar como um clarão.
De me veres do lado exterior.
Muro, fenda no muro e sem força para esperar.

De te hospedares em mim.
De descobrires a posição da árvore fixa no crescimento
da árvore que agora sou circulando com dificuldade
do fruto cortado para ocupar as mãos.
De o veres empunhado como arma para afastar o medo.

De veres a casa.
De estares à minha beira e no quarto ao lado
vazio, no vazio búzio
de ocupares o vazio para o libertar.
De veres a pedra branca dos meus olhos
seixo dos rins
pedra polida de tanto rebentar
primavera de si mesma.
De anunciares em silêncio
o nada que salva a minha mão perdida
remo à superfície teimando contra
o peso da âncora de fechar os olhos
e inclinar o corpo afogado.
De perdoares.

Por ter-me apagado tão longe de te ser luz
de te ser lâmpada horas e horas

à noite e no Inverno.
(...)
Estou por terra e vejo já do alto com a saliva
a saber-me ao bolor do chão.
De estar sentado e inútil - como se tudo à minha volta me cegasse -
Apodrecendo a cadeira um odor da terra - como a tempestade -
Cansado, cansado.
Sem força para ver a tua face.


Daniel Faria

com especial agradecimento ao meu publisher...



Eu vi herberto uma actriz a incendiar palavras num palco
quarto de hotel

as palavras dadas e as outras caladas num lugar saturado de
vapor de água
e aquelas gravadas na calçada perdidas a tentar perceber como
se escreve
um nome gritando um nome para a voz encurralada abandonar
a cabeça

eu vi a cerzidura de cada palavra a resistir à dor à tristeza
ao cansaço
de outras palavras arrancadas da sua pele na passagem
dos dias
palavras que se contaminam e se perdem sem ela saber já
de quem são
os rostos de mortos e vivos atropelados num
caderno imaginário

eu vi um corpo curvado subitamente brilhar num
campo de madressilvas
lá longe onde os amantes caminham sem rumo atrás
de sombras amarelas
onde os amantes se perdem em dobras de esquinas e espelhos
e olhares
os corpos traídos pela inesperada declinação da luz nos
seus ombros

eu vi uns cabelos negros tornearem uma lágrima que escurece
o dia
escurece a claridade de um gesto que vem de longe e
se imobiliza
talvez uma borboleta negra como as que de dia nos dizem
da noite
e nos fazem estancar o sangue que corre nas veias ávido
de água e luz

eu vi resistir um corpo branco amarelecido por uma luz que
não há
rodar na direcção da toscânia à procura da noite que nunca
tem fim
porque há uma noite eterna para os que acreditam na noite
sem fim
nos fios invisíveis que tecem palavras e pétalas de rosa
e desejos

eu vi umas mãos delicadas a tomarem em cuidados uma menina
perdida
a da memória emprestada daquele em quem as palavras são
salvação
perdidos eu tu e ela em enredadas palavras demasiado frágeis
para a verdade
num tempo em que já não florescem infinitos embrulhados em
laços azuis

eu vi o horizonte recortado pela deusa magoada pelo amor que
já não há
ou nunca houve
e o silêncio a encher o quarto e a coarctar o sangue
nas veias
subitamente substituido por um liquido verde que renova
mitos e mundos
caminhos ladeados por anjos esquálidos e deuses de
olhos vazados

eu vi a alegria quando se pensa que a tristeza são uns olhos
castanhos
marejados de lágrimas ou apenas a aflorarem o lado mais difícil de
dizer
do amor que já não virá das ilhas rodeadas por mar e por ilhas de
ilhas
olhos castanhos a desafiarem deuses e os vazios oceânicos das
distâncias

eu vi os teus olhos surpresos surpreenderem um homem sentado no
sonho
das palavras que se misturam umas com as outras como contas
coloridas
com imagens intermináveis semeadas de sonhos com plantas
carnívoras
sonhos que invadem as noites e nos empurram para o sol que nos
cega

eu vi nos teus olhos a ternura que submete os corações de touros
selvagens
a frescura e a luz que inundam as terras devastadas e estéreis dos
desamores
e resgatam da sombra das águas extenuadas as algas e os líquenes
precisos
à renovação das palavras deslumbradas esmagadas por securas e
tédios

eu vi a tua água límpida inundar os caminhos secos das nossas
memórias
a seiva que limpa as veredas escuras do nosso sangue em vão
derramado
o mel que suaviza as nossas gargantas secas e exaustas pelo
inenarrável
o sangue rejuvenescido que expulsa das nossas veias o lixo do
passado

eu vi a tua boca proferir fórmulas mágicas
"Obedece-me, meu coração. Eu sou o teu senhor.
Enquanto estiveres no meu corpo não me serás hostil:"
e eu sentado no chão a mimar o canto mágico furtado ao livro dos
mortos
com a esperança de acender na noite palavras e corpos e
olhares novos

eu vi os teus olhos cravados no chão à procura de sinais
cifrados
de enigmas que iluminem um pensamento novo ainda que
breve
uma luz que obscuramente possa desvendar as trevas do
mundo
e eu atarefado a desenhar no ar criptogramas para te
oferecer

eu vi aproximares-te de mim arrastando uma longa cauda de
fogo frio
e as tuas mãos a trespassarem sem dor o meu corpo desabitado e
dócil
os meus pensamentos desenhados pela mão esquerda de uma
criança
a minha alma que teimosamente busca ainda na lama as pérolas puras

eu vi e não vi tudo o que vi ou imaginei ou não imaginei e vi-te e
não te vi
sonhei-te talvez só no meu sonho vagabundo de inventar seres e
sonhos
fechado no quarto de hotel palco onde tu és verdade isso é
mesmo verdade
tu em estado de graça a incendiar palavras que estalam como
sal queimado

eu vi uma actriz a incendiar palavras
em estado geral de graça
a ser feliz
eu vi.


Carlos Alberto Machado

45

sê.sonha.beija.ri.ama.sê.

Parabéns C.

olha_me


Dançava, às vezes, por dentro de si mesma.

Baptista-Bastos


36

perde-te em sorrisos de criança.
nos teus, nos dela.
não dures. vive.
um beijo.

just don't put down your guns yet

quando nos põem numa vida não sabemos ter outra


Dulce Maria Cardoso



hoje chove muito, muito,
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta entra-se em muitos sítios
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo
mas não no mundo
nem numa mulher
nem na alma
quer dizer
nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim
como hoje
que chove muito
e me custa escrever a palavra amor
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e só a alma sabe onde as duas se encontram
e quando
e como
mas que pode a alma explicar?
por isso o meu vizinho tem tempestades na boca
palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que ele amou
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá
como o silêncio que existe entre duas rosas
ou como eu
que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que vê a chuva
e à chuva
ao meu coração desterrado

Juan Gelman

Peter Gabriel - The Feeling Begins

E a tua ferida, onde está?

Pergunto onde fica,
em que lugar se oculta a ferida secreta
para onde foge todo o homem
à procura de refúgio
se lhe tocam no orgulho, se lho ferem?

Esta ferida
— que fica assim transformada em foro íntimo —
é que ele vai dilatar, vai preencher.

Sabe encontrá-la, todo o homem,
ao ponto de ele próprio ser a ferida,
uma espécie de secreto
e doloroso coração.

Se observarmos o homem ou a mulher
que passam com olhar rápido e voraz
— e também o cão, o pássaro, uma panela —
a velocidade do olhar é que nos mostra,
ela própria e com rigor máximo,
que ambos são a ferida
onde se escondem mal sentem o perigo.

O quê?
Já lá estão, já os conquistou
— deu-lhes a sua forma —
e para ela a solidão:
lá estão inteiros no retesar de ombros
em que passam a concentrar-se,
com toda a vida a confluir na ruga maldosa da boca,
e contra a qual nada podem nem querem,
pois dela é que sabem esta solidão absoluta,
incomunicável — este castelo da alma —
para serem a própria solidão.




jean genet

Show me, show me, show me
How you do that trick
"The one that makes me scream," she said
"The one that makes me laugh," she said
And threw her arms around my neck
Show me how you do it

do desejo...


em pleno voo digo nuvens relâmpago ervas
águas homem mulher movimento oceanos
exaustos corpos
transumantes paixões
digo preciso do sonho dos gestos exactos da alegria
Al Berto


Estou à espera da noite contigo

Luiza Neto Jorge



é tão difícil sentar-se sozinho. sentar-se ali sozinho. a estrada a encher-lhe o olhar. estendida como uma vida sobre outras vidas. rompendo tempos. abrindo o passado, abrindo o futuro. a estrada nua de um lado, nua do outro. indecisa e implacável. implorando para ser atravessada. parecendo que implora. como se o presente pudesse existir neste lado e naquele lado e não se soubesse que lado escolher. e ele ali sentado. aparentemente sozinho.(...)

e ele sabe que nunca se poderá sentar ali sozinho. em nenhum lugar, em nenhuma dimensão se poderá sentar sozinho. porque no perímetro de quem respira… porque o leito por onde corre a respiração de alguém, é que é o chão mais profundo de um ser. é o lugar indizível do seu próprio divino. um espaço que só a água do sonho consegue ocupar. fundo, muito fundo, tão fundo como a eternidade. e é aí que evoluem todos os seres do seu ser, desamarrados do tempo, soltos, demorados como demora o rasto do último beijo no coração de quem ainda perde o que um dia a estrada levou.

Gil T.Sousa

la tristesse dans la lumière du matin



E o pior é pensar onde havemos de arranjar forças para no dia seguinte continuar a fazer o que fizemos na véspera e ainda em tantos outros dias já passados, onde encontraremos forças para tantas diligências imbecis, para mil e um projectos que não conduzem a nada, para as tentativas de vencer uma acabrunhante necessidade, tentativas que acabam sempre por abortar, e tudo isso para nos capacitarmos uma vez mais de que o destino é imutável e que o melhor é conformarmo-nos em ter de cair todas as noites da muralha abaixo, sob a angústia desse dia seguinte, sempre mais instável e sórdido.

É talvez a idade que surge, traidora, e nos ameaça com o pior. Já não existe dentro de cada um de nós música suficiente para fazer dançar a vida, aí está. Toda a juventude nos abandonou para ir morrer no fim do mundo, num silêncio de verdade. Para onde ir agora, pergunto, depois de não possuirmos em nós a soma bastante de delírio? A verdade é uma agonia sem fim. A verdade deste mundo é a morte. Precisamos escolher: mentir ou morrer. E eu nunca consegui matar-me.

Louis-Ferdinand Céline



Some day you will be old enough to start reading fairy tales again.

C.S. Lewis



vêm
diferentes e parecidas
com cada uma é diferente e parecido
com cada uma a ausência de amor é diferente
com cada uma a ausência de amor é parecida

Samuel Beckett



Tornamo-nos impermeáveis na solidão:
dentro da pele não viaja ninguém;
fora da pele ninguém nos vê passar.

Jesús Jiménez Domínguez


Quando duas almas, e digo bem, se enamoram uma da outra, estamos perante um caso fragrante de romantismo inglês. A princesa,o dragão e o senhor chapéu de coco: tanto basta para um drama em que o remorso é o artista principal. São assim os infelizes,não conseguem partir um pratosem ficar tolhidos pelo sentimento de culpa. E por isso, sentem eles, o melhor é estar quieto na berma do sofá, e ter medo de tudo, de tudo menos da infelicidade.

José Miguel Silva