Despede-te de mim, bate devagar à porta:
tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,
ruínas, tarefas de pão e linho, não dar
nome às coisas senão o de um vago esquecimento,
abandono. Despede-te de mim como se a vida
recomeçasse agora, não me procures onde
a memória arde e o destino se ausenta.
Tudo são banalidades, afinal, quando assim
se recomeça e a vida falha como um material
solar e ilhéu. Levamos poucas coisas, basta
um pouco de ar, os objectos fixos, em repouso,
os muros brancos de uma casa, o espaço
de uma mão. Arrumo as malas e os sinais,
aquilo que nos adormece em plena tempestade.
Francisco José Viegas

Mudemos de casa; porque é preciso
arrumar as dores de outra maneira,
certificarmo-nos da existência do corpo
em novos lençóis, voltar a ter ilusões,
lugar propício para a curiosidade
de alguns que nos fazem acreditar
que a vida é um amplo anfiteatro
para as mãos.

Jorge Gomes Miranda



Vamos fazer limpeza, mas geral
e vamos deitar fora as coisas todas
que não nos servem para nada, essas
coisas que não usamos já e essas
que nada fazem mais que apanhar pó,
as que evitamos encontrar porquanto
nos trazem as lembranças mais amargas,
as que nos fazem mal, enchem espaço
ou não quisemos nunca ter por perto.

Vamos fazer limpeza, mas geral,
talvez melhor ainda uma mudança
que nos permita abandonar as coisas
sem sequer lhes tocar, sem nos sujarmos,
que fiquem onde sempre têm estado;
vamos embora só nós, vida minha,
para voltar a acumular de novo.

Ou vamos deitar fogo ao que nos cerca
e ficarmos em paz com essa imagem
do braseiro do mundo face aos olhos
e com o coração desabitado.

Amalia Bautista


I sleep just to dream



Inventa uma parede
onde possas encostar-me o
corpo
pressionado pelo teu.
Uma parede de textura suave.

Uma parede única,
onde nos encontremos.
Inventa uma parede para o amor.

Silvia Chueire



Se olhasses para mim verias nos meus olhos
a lancinante expressão da solidão
e a esperança sem qualquer indecisão
de que é possível o teu nome ser maior
que o céu que me vela o silêncio da noite.

Amar-te desde sempre é mais que uma forma de estar vivo
e dar expressão à divindade que trago comigo
desde que atravessei a fronteira
que entre o mar e o mar estabelece
a luz mais verdadeira.

O mais sequer é tempestade que neste coração sangra,
ou dúvida subtil ou estremecimento,
sentindo o alvoroço em que te sinto
apenas peço que sejas tu o assombro
e me devolvas enfim a harmonia.

amadeu baptista

tendresse







voyage du silence


Voyage du silence
De mes mains à tes yeux...
Paul Eluard

estende a tua mão contra a minha boca e respira,
e sente como respiro contra ela,
e sem que eu nada diga,
sente a trémula, tocada coluna de ar
a sorvo e sopro,
ó
táctil, ininterrupta,
e a tua mão sinta contra mim
quanto aumenta o mundo

Herberto Helder



tudo no teu sorriso diz
que só te falta um pretexto
para seres feliz

uma querela talvez chegasse
ou um pequeno pastor que passasse
na estrada, com suas ovelhas

um riso, um pormenor
que no momento se pousasse
e o tornasse melhor

eu
vou pensando em coisas velhas
-sem sombra de desdém!-
na vida
naquele lampejo fugace
que o teu sorriso já não tem

e que é do passado
porque a nossa grande sabedoria
não soube tratar ente tão delicado

e declina, o dia

o pequeno pastor já não vem


mário cesariny


vai até onde ninguém te possa falar ou reconhecer – vai por esse campo de crateras extintas – vai por essa porta de água tão vasta quanto a noite deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te e as loucas aveias que o ácido enferrujou erguerem-se na vertigem do voo – deixa que o outono traga os pássaros e as abelhas para pernoitarem na doçura do teu breve coração – ouve-me que o dia te seja limpo e para lá da pele constrói o arco de sala morada eterna – o mar por onde fugirá o etéreo visitante desta noite.

Al Berto

touchez-moi...



no silêncio que antecede a tua voz, eu fico parado
diante da beleza.

se esticasse o braço, tocaria o teu corpo de menina.

mas eu nunca poderia tocar a tua beleza. entre mim e
a tua beleza existe a distância impossível que divide
a morte da vida.

José Luis Peixoto



Os muros.
Todos os muros.
Um só muro.
E toda a sede.
E todo o sal do mar
no peito.

Albano Martins



fiz a minha casa aqui
tu sabes porquê

escolhi construí-la sobre um rochedo
não para que perdure
mas para que não desabe quando o vento soprar
e por aqui o vento sopra sempre

sabes que não te evito
trago os bolsos cheios dos teus poemas

quando era pequeno trazia nos bolsos
pedras que apanhava no caminho

os poemas são cheios de palavras por dentro
e as palavras que há nas pedras perduram ao vigor dos cinzéis
são como casas construídas sobre rochedos
falam de nós se na infância as levámos nos bolsos
falam de nós como se fossem poemas
e nós escutamos a sua voz
porque expomos as nossas mãos ao silêncio

as pedras estão cheias de silêncio por dentro
como se fossem poemas

as palavras habitam o coração do silêncio
e se eu não sei contar as palavras que há dentro dos teus poemas
como posso saber quantas habitam o coração do teu silêncio

José Rui Teixeira

preciso do sonho


O que faço na memória de um degelo de rios, quando as águas caem sobre as águas, sob a espuma redundante de ideias brancas?

Aqui me afundo até ao próprio fundo de mim próprio, aqui onde os gestos humanos da despedida e do amor não têm outro sentido além do que nasce das próprias águas: efémeros, como o tempo, e como o tempo presos ao que, cada um de nós, ignora do outro. Acendo cigarros nos cigarros, respirando o fumo húmido das origens, vigiando a transparência que se desfaz no intervalo das folhas,quando o vento as empurra para a estrada, pergunto de onde vem a minha saudade de ti, e até onde vai o meu desejo de te ouvir, de novo, à minha frente, enquanto as horas passam como se não tivessem de passar,e os teus lábios bebem todo o tempo da minha vida. Como se o desejo não se esgotasse, também ele, como estas águas que acabam em cada instante em que se renovam, trazendo as chuvas eternas do norte para dentro de poços sem fundo, até ao fundo dos lagos mais subterrâneos, puxando com a sua negra densidade os meus impulsos de treva: cama obscura para onde desço quando adormeço.
Mas tu, com os teus braços de raiz aérea, puxas-me para esse cimo de montanha onde o silêncio se transforma em sílaba - a sílaba inicial do mundo, a interrogação do gesto nascente de todas as origens, o soluço de um suicídio de murmúrios, percorrida pela única percepção inútil: a da vida que se esvai no instante do amor. E encostamo-nos à pedra abstracta do horizonte, a que nos deixou sem voz quando as grutas do litoral se abriram; para que a pedra nos beba, gota a gota, todo o sangue. Então, é nas suas veias que correm as nossas pulsações. E afastamo-nos, devagar, para que a terra viva através de nós uma existência puramente interior, despida do fulgor animal das manhãs.

Sentamo-nos no mais longínquo dos quartos, de janelas fechadas, e abraçamo-nos com rumor de primaveras clandestinas, com o inverno nos olhos.

Nuno Judice



Um rio de lume une a nossa pele,
o rosto inteiro.

A estrada prolonga-se até ao deserto
onde a noite
é sempre noite.

Fecha os bares onde estou,
desencontrado.

Leva-me para casa e
adormece-me pela primeira vez.

João Borges



...voltar-me para o lado esquerdo e assim,
deslocando todo o peso do sangue
sobre a metade mais gasta do meu corpo,
esmagar o corAção.

Carlos de Oliveira



Ao fundo do ser há uma luz que não se manifesta por palavras.

Poderei aproximar-me dela sem o sacrilégio da linguagem?


Casimiro de Brito


Debaixo destes tectos, entre cada quatro paredes,
cada um procura reduzir a vida a uma insignificância.
Todo o trabalho insano é este:
reduzir a vida a uma insignificância,
edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida.

Tapá-la

escondê-la,
esquecê-la.


Raúl Brandão

a house is not a home

Havia, enquanto recordava, uma pequena ferida na sua voz:

em nenhum lugar achara ainda o nome da sua casa.


Maria do Rosário Pedreira


Toca-me

conjuga um verbo que conheças
no presente do indicativo,
soletra-o na segunda pessoa
do singular ao meu ouvido,
dá-me qualquer coisa
que me pareça eterno.

José Rui Teixeira

será teu cheiro maresia ?



Esta noite tive um sonho;
conheci um homem que tinha o mar no lugar do coração,
e quando sentia o seu corpo contra o meu,
ouvia lá fora a fúria do ____mar

Al Berto

Yann Tiersen - Atlantique Nord


A tua vida é uma história triste.

A minha é igual à tua.

Presas as mãos e preso o coração,
enchemos de sombra a mesma rua.


Eugénio de Andrade



"Até posso corar se te disser que todas as noites,

quando me afundo na cama,

abraço-me como se fosses tu a abraçar-me.

Peço-me de empréstimo.

Enquanto os teus braços estão aí,

noutro lugar do vento"

Ana Salomé

Pray for rain




i'll wait...





Há alguém no mundo, não sei onde,
ou antes sei,
mas prefiro esquecê-lo,
que me despe só com um olhar
e me sonha vestida de princesa.
Alguém com quem não posso resistir
a arder debaixo do duche.
Alguém com quem se torna inevitável
suar dentro de um iglu.

Amalia Bautista

gostava de te olhar ...


Gostava de te olhar a dormir, mesmo que isso nunca aconteça. Gostava de te olhar, a dormir. Gostava de dormir contigo, entrar no teu sono, sentir o seu fluxo suave e nebuloso a deslizar sobre a minha cabeça e caminhar contigo nessa floresta luminosa ondulante de folhas fluorescentes, com um sol aquoso e três luas, até à caverna onde terás que descer, em direcção ao teu pior medo.

Margaret Atwood


si un día te vás
y ya no vuelves más

si un día me voy
y ya no vuelvo yo

que grán silencio
todo en suspenso
que vértigo de no verte

retumbo como una campana
abro la ventana
y entrás tu

entrás tu.

lhasa

Eu hei-de amar uma pedra*


Nunca bom dia, boa noite, bom ano. Nunca obrigado. Nunca falar. Nunca necessidade de falar. Tudo fica mudo, longe.(...)Todos os dias tentamos matar-nos, matar. Não só não nos falamos como não nos olhamos. A partir do momento em que somos vistos não podemos olhar. Olhar é ter um movimento de curiosidade para, e por, é descer. Nenhuma pessoa olhada vale o olhar sobre ela. É sempre desonroso. A palavra conversa é banida. (...) Estamos juntos numa vergonha de princípio que é ter de viver a vida.

Marguerite Duras in O Amante
António Lobo Antunes*

i'll wait



Gasto-me à espera
impraticável

fiel
sugo os lábios da noite
invariável caio nos poços da noite

Gasto-me à espera da noite alheia
amassada de gargalhadas doces e areia

Amor anoitecido
vem
tecer-me um vestido nocturno

Atraiçoo os anúncios luminosos
até a lua nova sabe a ausente

- e eu anavalhei-te com naifas de ansiedade -

Estou à espera da noite contigo
venham as pontes ruindo sobre os barcos
venham em rodas de solos montes os túneis e deus


Estou à espera da noite contigo
livre de amor e ódio
livre
sem o cordão umbilical da morte
livre da morte
estou à espera da noite
Luiza Neto Jorge

If you were the road

I'd go all the way

wild is the wind




Love me love me love me

Say you do

Let me fly away with you

For my love is like the wind

And wild is the wind

Give me more than one caress

Satisfy this hungriness

Let the wind blow through your heart

For wild is the wind



O teu corpo transpira o meu ópio.
Não te afastes.

Vasco Gato




Um hálito de música ou de sonho,

qualquer coisa que faça quase sEntir,

qualquer coisa que faça não pensar.

Fernando Pessoa


A passagem do tempo fez-me perceber que o meu entusiasmo,
comparado com a realidade, era ridículo.
A realidade era aquela sala arrumada velha.
O meu entusiasmo era uma ilusão que construíra sozinho a partir de nada.
Sentado, assistia às sombras que cresciam da pernas dos cadeirões.


José Luís Peixoto, Morreste-me

ingenuidade na minha idade é estupidez



Toco tu boca, con un dedo toco el borde de tu boca, voy dibujándola como si saliera de mi mano, como se por primera vez tu boca se entreabriera, y me basta cerrar los ojos para deshacerlo todo y reomenzar, hago nacer cada vez la boca que deseo, la boca que mi mano elige y te dibuja en la cara, una boca elegida entre todas, con soberana libertad elegida por mi para dibujarla con mi mano en tu cara, y que por un azar que no busco comprender coincide exactamente con tu boca que sonríe por debajo de la que mi mano te dibuja.Me miras, de cerca me miras, cada vez más de cerca y entonce jugámos al cíclope, nos miramos cada vez más de cerca y los ojos se agrandan, se acercan entre si, se superponen y los cíclopes se miran, respirando confundidos, las bocas se encuentran e luchan tibiamente, mordiédose con los labios, apoyando apenas la lengua en los dentes, jugando en sus recintos donde un aire pesado va y viene como un perfume viejo y un silencio. Entonces mis manos buscan confundirse en tu pelo, acariciar lentamente la profundidad de tu pelo mientros nos besamos como si tuviéramos la boca llena de flores o de peces, de movimientos vivos, de fragrancia oscura. Y se nos moderdemos el dolor es dulce, y si nos ahogamos en un breve y terrible absorber aimultáneo del aliento, esa instantánea muerte es bella.Y hay una sola saliva y un solo sabor a fruta madura, y yo te siento temblar contra mi como una luna en el agua.

Julio Cortázar

ses bras...




Um dia compreendeu como seus braços eram somente feitos de nuvens.
Impossível com nuvens abraçar até ao fundo um corpo, uma sorte.
A sorte é redonda e conta lentamente as estrelas do estio.

Fazem falta uns braços seguros como o vento,
E como o mar um beijo.

Mas ele como seus lábios,
com seus lábios não sabe dizer senão palavras,
palavras até ao tecto, palavras até ao solo.

E seus braços são nuvens que transformam
a vida em ar navegável.

Luis Cernuda


Estou nu diante da água imóvel.
Deixei a minha roupa no silêncio dos últimos ramos.
Isto era o destino:
chegar à margem e ter medo da quietude da água.

Antonio Gamoneda

ao rapaz das estrelas


Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas
por me interessar pelo rapaz
hoje quando penso no rapaz penso em estrelas
e quando penso em estrelas penso no rapaz
como me parece que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias
parece-me que não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa por estrelas
já não me lembro se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas
Adília Lopes

Parabéns!

pause





Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor -
mesmo que no silêncio assustador
se fundam os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode
nem os anos da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco,
e quem o alcançar é ferido de aflição.

Agora compreendes porque já não bate,
sob a tua mão em concha, o meu coração.

Anna Akhmátova

Tempo branco, tempo de nenhuma paixão.
Desce ao âmago desta cela. Debruça-te para o interior do meu vazio. Nenhum rosto, nenhum pensamento, nenhum gesto inútil. Nenhum desejo — porque o desejo precisa de um rosto. E no lugar daquele que partiu acende-se a noite. Pressente-se a morte. Mas no fundo de mim carregas ao ombro uma chapa de aço, em forma de sol apagado. O teu corpo fundiu no silêncio do meu. Dormimos na espessura da poeira, e nela suspendemos o tempo. Abandonamos a alma. Esquecemo-nos. Nada sentimos, nenhum acto se realiza. Nenhuma alegria ou tristeza. Apenas matéria, matéria deixada à voragem dos escombros e da ferrugem. Agora podemos tocar, enlear, comprimir ou distender os corpos. Construir formas com eles e deixá-los, assim, numa melancólica eternidade. Longe do olhar dos outros, respiramos ao mesmo tempo - como uma só engrenagem, única e bela. Resquício de memória que se apaga lentamente, sem que ninguém dê por isso.

Al Berto

strange time of my life




Passo a mão pela tua cabeça,
recurvamente, atentamente, e só com dedos brandos,
olhando-a como passa e vendo onde passou.

Quero saber o que tu pensas.

O que tu pensas, mas apenas como,
e quando e o porquê, e não
que estejas pensando ou não que a minha mão,
atenta e curvada, passa brandamente.

Quero saber aquilo que nem sabes.

Aquilo que nem sabes - como saberias
o que o pensar é antes de pensar-se?

A mão que pousa e vai passar atenta.
O olhar que espera ver passar o gesto.
A tácita lembrança de volver os olhos.
A brisa que sabemos vai soprar tão mansa,
ainda antes, no fremir de pétalas ou folhas,
mas não na expectativa do arrepio prévio.

Por que esperaste, ciente, a pele da minha mão?

Jorge de Sena

I look quiet and consistent, but few know how many women there are in me.

Anais Nin

tired...

or not


há muito tempo, no começo de uma noite de árvores já despidas, agitadas pelo vento de setembro, imaginei a tua vinda. havia uma indefinida inquietação na natureza, como se estivesse para se aproximar uma grande tempestade, e o horizonte colorira-se de tons assustadores. a electricidade tinha faltado, e havia velas tremelicando sobre as mesas, um certo sentimento de frio que nos fazia aproximar-nos das camas, enrolarmo-nos dentro das camisolas, como se esse fosse o preciso começo de mais um inverno, com tudo o que de irremediavelmente perdido ficava para trás, sobretudo os rostos iluminados pela intensa exaltação da luz. eu aquecia as mãos na fornalha do cachimbo, acariciava as folhas do livro que me tinha acompanhado durante todo esse mês, sentia-me lavado e com uma indescritível paz na alma. pela primeira vez na vida sabia-me completamente entregue a mim próprio, tal como as colinas que vira ao fim da tarde, espalhadas ao sol, amarelas e solitárias, sem qualquer sentido que não fosse multiplicarem-se até aos confins da minha retina, redondas e sempre iguais a si mesmas, perdurando de dia para dia e de século para século.mas, dizia-te, nesse momento prenunciei a tua vinda. julguei mesmo saber quando me chamaste pela primeira vez, talvez num desses muitos sons ambíguos que tem o estalar de uma casa, e me disseste: prepara o caminho para o meu rosto. abre-te de par em par, como se fosses uma enorme folha de uma planta carnívora, distende-te todo como um animal dócil e devorador, apresta-te a teres os meus pés nus sobre o teu peito, os meus lábios elevando-se ao longo do teu sexo como as pétalas de uma flor vermelha de sangue.


assustas-me por me quereres assim, e por te acercares tão inesperadamente neste fim de dia de outono, como se uma nudez indecisa se aproximasse do meu leito sem eu lhe poder definir os contornos do olhar, pensei. sabes, nesta altura do ano os patos bravios migratórios já se encontram todos sobre o lago, e um tal anúncio pode causar-lhes a morte, ou pelo menos uma partida precipitada, e o sangue das suas asas ficar espalhado no meu peito. interrompes um pacto antigo que fiz com esta vida cómoda: a de poder sobreviver em troca de um pouco de ternura, das refeições às horas, do meu cachimbo pousado sobre o estirador, entre a elegância das lombadas dos meus livros, na certeza de estar construindo a obra que esperam de mim. tu vens de súbito tratar-me como um rapaz, abrir-me as cortinas de veludo do teu púbis com um sorriso azul, dizer-me que tudo começa agora, que deixaste crescer os cabelos para mim, e que eles te provocam uma sensação de crina nas nádegas, que queres correr.como pudeste saber que era eu a pessoa certa? e sê-lo-ei? como intentas possuir a minha alma, assim por antecipação? como pudeste adivinhar que atravessei desertos, que no meu palato tenho a secura de cactos cujos espinhos se me enterram nas gengivas quando sorrio? não receias a minha voracidade, este apetite por te sugar toda, desde a saliva ao sangue, esta vontade de morte que me acomete, de te cortar pelo sexo, de te abrir como a um brinquedo, atirando as peças para os quatro cantos do quarto?eu sei, marcaste encontro comigo num qualquer hotel, solitário e frio, onde chegarei sem bagagem e segurando com uma mão de suor o meu cartão de crédito. não teremos música, nem uma chávena de chá, nem interessará se lá fora chove ou se no passeio passa a figura da pessoa que outrora foi minha mãe. é suposto eu ter crescido, e não estou aqui nem para me explicar nem para finalmente te conhecer. estou aqui porque tu me insinuaste que querias possuir o meu olhar, com uma determinação clandestina. não te esqueças de fechas os vidros, porque estamos numa cave, e pode ser que lá fora seja veneza, que as vagas se agitem e venham entornar-se aqui dentro.pode acontecer que a cama se transforme numa jangada e tu consigas matar-me, dar-me descanso no alto mar, quando chegar a hora em que o sol ruboresce as asas dos anjos que trepam, expeditos, às cúpulas das igrejas.partir assim deste sítio terá de ser forçosamente inesquecível.

Vítor Oliveira Jorge