solitude


Hoje, vou correr à velocidade da minha solidão.
Al Berto


lembro-me da minha mão pousada sobre a tua
e esse instante está debaixo
da palavra solidão.

José Luís Peixoto

pele


Os dedos com que me tocaste persistem sob a pele, onde a memória os move.
Luis Miguel Nava


lentamente os dedos aperfeiçoaram a arte de pararem
sussurrantes sobre o corpo... não a deslizarem
não a percorrerem o espaço da veloz insónia
as mãos redescobriram o silêncio inesgotável da escrita
praticam esse ofícia muito antigo
de na imobilidade da fala tudo desejarem

al berto



não ouso sequer perturbar a tua imobilidade
escuto com toda a clareza a metamorfose

que se desenrola em ti enquanto
te desamarras e rompes o rodeio

estremeces-me brutalmente
- és o único diamante que riscou a minha pele


Frederico Mira George

regarder



Tenho aquela que me olha e que olho
e misturamo-nos como brisas e silêncios
e digo
tenho aquela que me vê e ela olha-me
e tudo o que somos é uma partilha
uma mistura
e digo
diz e aquela que tenho
beija-me num olhar e num
silêncio que não posso dizer

José Luís Peixoto

Rodrigo Leão

A invenção do amor


Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio
A descoberta
A estranheza
de um sorriso natural e inesperado
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou
A TV anuncia
iminente a captura
A policia de costumes avisada procura os dois amantes nos becos e nas avenidas

Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antesque a invenção do amor se processe em cadeia
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros
os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o

Um homem e uma mulher
conheceram-se
amaram-se
perderam-se
no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los
dominá-los
convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas
Fechem as escolas
Sobretudo protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto
Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo
Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros
É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade
Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas...
É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou deixou cair as armas
e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância
Campos verdes floridos
Água simples correndo
A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente
É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta...

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa
tribunais de excepção
Para bem da cidade
do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência
Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo

numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua.

Daniel Filipe

que vamos dizer?

Que quer dizer a mágoa sempre que se deixa fazer sentir, quando se afasta depois de ocupar os únicos sítios? O que quero dizer fica menos veloz. A evitar o azul branco do céu sobre mim, a visitar esta terra só de inverno. Seria inútil começar agora uma conversa mais explícita, talvez sobre o ritmo exigente da cidade em que estás ou sobre a actividade quase perfeita das crianças em redor. Prefiro calar-me, sentir o vento que vem do mar, rir um pouco tropeçando na madeira corroída. De pouco serve escutar assim as vozes já tão cansadas, antes a cuidadosa escolha das tábuas a pôr na casa vazia. Depois falaste-me de um eco, de um barco inclinando-se,da casa que não tens. Esgota-se o que mais falta. Que vamos dizer? Está bem amo-te. E ao fogo acabando na cinza, à manhã que não existe.

Helder Moura Pereira