o que vejo já não se pode cantar

A noite está próxima. O que vejo já não se pode cantar. Caminho com os braços levantados e com a ponta dos dedos ascendo ao firmamento da alma. Espero que o vento passe... escuro, lento. Então, entrarei nele, cintilante, leve... e desapareço.

Al Berto

abismo...

nunca falámos muito. (acho que nunca falámos nada) e nao sinto necessidade de começar agora. o que poderia dizer? existem séculos e séculos de silêncio entre nós e, debaixo dos séculos do silêncio, ocultas lá no fundo, se calhar esquecidas, se calhar presentes, se calhar apagadas, se calhar vivas e a doerem-me, coisas que prefiro não transformar em palavras, coisas anteriores às palavras...

Antonio Lobo Antunes

a handfull of ...

interrogação


Um abismo imenso
(particula de alguém)

Uma ferida aberta
(pedaço de alguém)

Uma dor perene
(alimento de alguém)

Um amor intenso

possuido por ninguém.

Joaquim Amândio Santos - pedra sobre pedras

... obrigado

CONFESSO

quero-te minha
numa retenção de portas aladas.
para sempre teu
solto das grilhetas de prisioneiro.

já estou a caminho,
amor,
num trilho que respeita
toda a seda dos teus contornos.

ouves os meus passos?

são música tua.
como tú
não deste mundo.

!

No silêncio dos olhos

Em que língua se diz, em que nação, em que outra humanidade se aprendeu a palavra que ordene a confusão que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados cantos de ave pousada em altos ramos dirão, em som, as coisas que, calados, no silêncio dos olhos confessamos?

José Saramago

escuta...

rasgaram-me as entranhas à procura de vida. o que encontraram foi um deserto árido e vazio.nada tenho para oferecer. nada tenho para dar. apenas eu. nada mais possuo. terá de bastar. escuta...terá de bastar. não me peças que continue a lutar. não me peças mais um combate. escuta... estou cansada. cansada que olhem para dentro de mim. cansada da navalha que me retalha. cansada . quero respirar. preciso. fundo. bem fundo. respirar como quem acaba de nascer. expulsar o fétido ar que mora dentro de mim. preciso. escuta... escuta o que te digo nos longos silencios, nos olhares perdidos, nos gestos contidos. escuta...

" Devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
O ódio trasnforma-se em tempo.
O amor transforma-se em tempo.
A dor transforma-se em tempo.
Os assuntos que julgavamos mais profundos, mais impossiveis, mais permentes e imutáveis, transformam-se devagar em tempo.
Por si só, o tempo não é nada. A idade nao é nada. A eternidade nao existe.
No entanto, a eternidade existe...
Os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
Os instantes do teu sorriso eram eternos.
Os instantes do teu corpo de luz eram eternos."

ODE AO ACONCHEGO

bater as asas do desejo
com destino traçado
pelo azul de um céu,
nascido no ventre da ternura.
languidamente ergo
o meu aconchego alado
e plano sossegado,
sem fim no horizonte
que envolve o meu ninho.

um desejo carregado de vida.
em cada palavra um sopro.
em cada verso uma acometida.
em cada estrofe um mundo.
por cada momento, mais,
muito mais, do que um simples segundo.
a poesia tem horas que o tempo não marca.
o êxtase tem regras
que apenas respeitam ao frêmito.
nascem selvagens,
criam mandíbulas
que desfazem fronteiras.
nunca desfalecem,
apenas se aconchegam
para lá do cansaço,
onde o prazer vira lânguido repouso.

aqui...

"é ali... na paragem do tempo
quando os olhares se cruzam
quando o respirar se mistura
é ali... no tempo suspenso das sombras
é ali ... que sou."

por ai...

ando por ai...
escondendo do mundo a tristeza que me devora o corpo.

Al Berto