saiu para a rua.
embrenhou-se na espessura da noite, amou e traiu, seduziu e deixou-se seduzir, morreu um pouco todas as manhãs e nunca mais regressou ao que tinha sido.

Al Berto

Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain


tu não existes...

Às vezes, nos momentos trágicos, já não é contigo que eu deparo - é com outro ser que assiste sempre, como um espectador, a todos os meus exageros. Deitavas-te comigo, levantavas-te comigo, ferrada como um punhal - e não existias. Neguei-te. Expliquei-te. Reduzi-te às tuas verdadeiras proporções - e tu não existias! Atormentaste-me e fizeste-me sofrer mesmo quando já compreendera que não existias. E agora mesmo, quando o universo é outro universo, ainda encarniças sobre em mim como um fantastma.
Escusas de te rir - tu não existes..


Raul Brandão

O Cheiro dos Dias


A ressaca dos dias trazia-o à costa da forma habitual. Combalido, levantava primeiro a cabeça, deixando-se rolar na cama, qual insecto kafkiano em aprendizagem dos ritmos corporais, até alcançar o extremo, altura em que podia já colocar os pés no chão e levantar o torso cadavérico encimado pela cabeleira desgrenhada tão ao gosto da moda. O insistente sabor a papel químico que sentia na boca era já escovado enquanto analisava as olheiras que lhe emprestavam um ar heroin-chic. Preparava o banho. Uma vez saído, limpava-se atentamente, após o que espalhava pelo corpo e pela face toda a panóplia de cremes e lenitivos da dolorosa decadência a que se submetera. O cabelo a necessitar de cuidados. Voltava ao quarto e a música começava. Límpida, cativante, energética, bem ao sabor do seu tempo, ao sabor da passerelle diária entre tantos outros na cidade. Vestido, arranjado para a vida, dava uma palmada na cara na tentativa de ganhar alguma cor. Em vão. Sentado na cama, fazia traços no espelho de onde aspirava a vida. O cheiro dos dias. Com ar afectado e dançante, saía para a cidade. Nada como ser bonito.

Ai Cú [aqueles poemas japoneses de merda que estão na moda e que toda a gente sabe escrever - mas este é muito bonito, muito profundo e tal...]

Quanto de mim foi prometido
Só para poder não cumprir


...

[ah! fôda-se! ah! artista! silêncio que se vai cantar o fado...]

Manifesto Sem Dedicatória Óbvia





A verdade? A verdade, meu amigo, é que tudo isto não passa de uma fétida e borbulhante feira de vaidades, uma mentira-espelho do nosso "quero ser", um reflexo de intangíveis presunções.


A verdade, meu amigo, é que não podemos ser outra coisa que não aquilo que somos, que a volta da vida termina em morte e que todos os minúsculos glóbulos do nosso ser para lá se encaminham, oxidados, num prenúncio da derradeira ficção por que o nosso ser clama, a da hedionda imortalidade.


A verdade, meu amigo, é que faças o que fizeres, aparentes o que aparentares, nada se assemelha à vida no seu ritmo obscuro que nos escapa à compreensão. E que, por muito que possas relativizar as coisas, não passas - tu e eu - de um abstracto monte de merda dotado de uma espécie de maquinaria de alta tecnologia que te empresta o ser que queres individual e que, no entanto, se move num padrão de agora e sempre amén.


E não fosse esta lucidez embriagada de um momento de perfeição alcoólica, e nunca te deitarias na contemplação do verdadeiro motivo da tua existência por estas paragens: a do verso vácuo, a da negligência do ser, a do faz-de-conta que sou algo.


Sente-te em primeiro, apalpa-te os poros de onde sai toda essa verborreia faminta de atenção, faz-te à vida real e olha em torno desse abundante sebo a que chamas ego - talvez consigas, enfim, divisar outro que não tu, que não a presunçosa imagem que de ti fazes.


Ah! o artista! Quanto de ridículo há em ti!


Nada do que fazes caberia na ópera bufa que a merda que eu produzo poderia vir um dia a constituir. És pequeno, como os demais, como eu, comparado com as leis que predominam no éter. Falas-me de deuses e de coisas abstractas como o amor, esquecendo os amores ódio da populaça - porque não a conheces, porque não pareces querer compreender que o amor é saliva, suor, sémen, toda a porcaria possível e imaginária que é, no fim, um qualquer poema - esse sim - de Scola, porque te julgas acima dela.


Ah, artista!, olha em volta e nota o ridículo que há em ti. Vê as secreções que o imaginário que sugeres origina, ousa responder-lhes na toada e diz-me: era isso o planeado? Pensavas tu que estavas acima da linha de água... Mas o esgoto em que te moves, o da pútrida carne feita homem, é assim mesmo: um imenso regurgitar de versos e poemas falsos, um imenso paroxismo de ineficaz fado.


Salva-te, enquanto tens a mínima ideia de realidade, faz por seres. Só isso, e, para nosso bem, nunca mais escreveres.



VAI

À

MERDA

reste...


Não vás. E não fui. Ainda que todo o dia, toda a vida, tivesse esperado aquele instante, único entre todos os instantes, ainda que tivesse imaginado o mundo ao pormenor depois da fronteira pequena daquele instante, não fui. Não vás. Ainda que se tivesse levantado uma cegonha a planar como um abraço que nunca demos, mas que julgámos possível, ainda que todo eu a tenha olhado, ainda que lhe tenha dito espera por mim, hoje vou buscar-te, ainda que o crepúsculo nos tenha visto onde só vão os mais sinceros, entrei neste quarto, e deitei-me nesta cama, e deixei que o instante único passasse indistinto e que toda a minha vida se tornas­se um lugar penoso de instantes desperdiçados, instantes desperdi­çados antes do tempo, durante o fastidioso do seu tempo, depois da memória má do seu tempo, no tédio de não ter e de não esperar nada. Não vás. E não fui. (...)Abro e fecho a porta da rua. A noite é como a conheço: negra e profunda, a isolar-me dentro de si e a dizer-me que também eu sou a noite que a noite é. Não ponho as mãos nos bolsos, deixo-as e deixo os braços. Levanto a cabeça e olho a noite no céu, não as estrelas, mas o espaço negro que as separa."

José Luis Peixoto

a menina do mar


- tu és da terra e se fosses ao fundo do mar morrias afogado.
Mas eu sou uma menina do mar. O mar é a minha terra. Tu se vieres para o mar afogas-te. E eu se for para a terra seco. Não posso estar muito tempo fora de água. Fora de água fico como as algas na maré vaza.
- Que pena que eu tenho de não te poder mostrar a terra! – disse o rapaz.
- E eu que pena tenho de não te poder levar comigo ao fundo do mar para te mostrar as florestas de algas, as grutas de corais e os jardins de anémonas!

Sophia Andresen- A menina do mar

but not tonight...


One night I will say to it: Heart, be still. And it will.


Margaret Atwood

Andavam pela casa amando-se no chão e contra as paredes. Respiravam exaustos como se tivessem nascido da terra,de dentro das sementeiras. Beijavam-se magoados até se magoarem mais. Um no outro eram prisioneiros um do outro e livres libertavam-se para a vida e para o amor.Vivendo a própria morte voltavam a andar pela casa amando-se no chão e contra as paredes. Então era música, como se cada corpo atravessasse o outro corpo e recebesse dele nova presença, agora serena e mais pobre mas avidamente rica por essa pobreza. A nudez corria-lhes pelas mãos e chegava aonde tudo é branco e firme. Aquele fogo de carne era a carne do amor,era o fogo do amor,o fogo de arder amando-se e por toda a casa,contra as paredes,no chão. Se mais não pressentissem bastaria aquela linguagem de falar tocando-se como dormem as aves. E os olhos gastos por amor de olhar,por olhar o amor.E no chão contra as paredes se amaram e pela casa andavam como se dentro das sementeiras respirassem. Prisioneiros libertados, um no outro eram livres e para a vida e para o amor se beijaram magoando-se mais, até ficarem magoados.E uma presença rica,agora nova e mais serena,avidamente recebeu a música que atravessou de um corpo a outro corpo chegando às mãos onde toda a nudez é branca e firme. Com uma carne de fogo,incarnando o amor,incarnando o fogo,contra o chão das paredes se amaram pressentindo que andando pela casa bastaria tocarem-se para ficarem dormindo como acordam as aves.
Joaquim Pessoa