dedicado ao "jigoku"

quando os teus olhos se abrem
o mar dilata a terra em ondas brancas
repara
não é quando abres os olhos
fechados cobrem horror e espuma fétida
cosidos na cara tecem dunas sub aquáticas
palmos de areia pálida
raízes secas e rugas desidratadas
é a tempestade que as rega
o infortúnio vence as marés cheias de ócio
a sede avança sobre a dormência ingrata
os monstros marinhos rompem as pestanas
e começa na boca
quando os teus lábios se abrem
repara
não é quando abres os lábios
fechados tapam cavernas naufragavéis
cosidos no rosto salvam as palavras
verbos fecundos que atravessam os rios ágeis
poemas férteis por entre as cáries
é o sal que os mata
o turpor das algas na garganta
o cume das vagas redundantes
o cu da noite ali deitado
e acaba nos pulsos
quando as tuas mãos se abrem
repara
não é quando abres as mãos
fechadas cercam oceanos
cosidas no peito são duas caravelas
é quando os teus olhos e os teus lábios se abrem
que as tuas mãos voam
*
beijinho,
alice

Saudade

Saudade é solidão acompanhada
é quando o amor ainda não foi embora,
mas a amada já ...

Saudade é amar um passado
que ainda não passou,
é recusar um presente que nos magoa,
é não ver o futuro que nos convida ...

Saudade é sentir que existe
o que não existe mais ...

Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam ...

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos

não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido ...

Pablo Neruda

Segredo

Nem o Tempo tem tempo
para sondar as trevas

deste rio correndo
entre a pele e a pele

Nem o Tempo tem tempo
nem as trevas dão tréguas

Não descubro o segredo
que o teu corpo segrega

David Mourão Ferreira

SEDA



sempre que aqui não estás
tenho saudade do futuro.


atrevo-me a ostentar
a falta que sinto de mim.
busco-me no único espaço
onde sei que estarei
braços perfeitos do aconchego.

aí me quedo,
nunca mudo, deserdado de palavras,
porque herdeiro do sossego
nascido
nos meus ternos murmúrios.
falo-te lauguidamente por eles.

para que me deixes ficar permanentemente inquilino de Ti.

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa


Sophia de Mello Breyner Andresen

Vendado


Rápidas mãos frias
retiram uma a uma
as vendas da sombra
Abro os olhos
Ainda estou vivo
No centro
de uma ferida ainda fresca.

Octavio Paz

não te deixarei morrer, amor

quem és tu que avanças o tempo no meu calendário?
que o escrutinas como no talho e divides em doses duplas?
pago-te a carne cirurgicamente cortada
e levo-te pendurado em mim até ao congelamento cínico
escolho a gaveta que promete melhor temperatura de conservação
e quase desejo esquecer-te
que esta seja uma câmara fúnebre irretornável
que o gelo devore a etiqueta da tua identidade
como um sopro de cera nas velas do teu quarto
que nunca a fome me faça recuperar-te no microondas
que a sede encoste ao lado da razão partida em farpas
que a minha boca possa ser líquida como antes
que o teu barco desencalhe e não derrame petróleo
na escuridão
quase desejo violar-te
separar-te em grãos no fundo de uma chávena
fumar-te consciente dos malefícios do tabaco
arrancar-te as gengivas e acompanhar com natas
passar o resto no triturador um dois três
saber em um que móis
em dois que dóis
em três que matas
fulminar-te na cama
e profanar o descanso da criança em chamas
quase desejo penetrar-te
lavar-te a trinta graus com analgésicos
secar-te no ponteiro das roupas delicadas
e enxugar-te depois com estaladas
eis a minha vingança
voltarei a ti num dia em que estejas acordado
vou esfregar a louça que entope a banca da tua consciência
e meter-me como açúcar nos teus dentes
deixa-me entrar em ti
quase desejo perdoar-te
tirar do frigorífico a fatia de sono dos teus genes
e adormecer


Que ando eu a querer de mim
ou de tudo neste mundo?

Álvaro de Campos