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Ficou vazio o teu lugar à mesa. Alguém veio dizer-nos que não regressarias, que ninguém regressa de tão longe. E, desde então, as nossas feridas tem a espessura do teu silêncio, as visitas são desejadas apenas a outras mesas. Sob a tua cadeira, o tapete continua engelhado, com a tua ida. Provavelmente ficará assim para sempre. No outro Natal, quando a casa se encheu por causa das crianças e um dos nós ocupou a cabeceira, não cheguei a saber se era para tornar a festa menos dolorosa, se era para voltar a sentir o quente do teu colo.

Maria do Rosário Pedreira

wishes and hopes



entre a saliva e os sonhos há sempre
uma ferida de que não conseguimos
regressar

e uma noite a vida
começa a doer muito
e os espelhos donde as almas partiram
agarram-nos pelos ombros e murmuram
como são terríveis os olhos do amor
quando acordam vazios

Alice Vieira


Quis a tua nudez.
Não quis que te despisses.
David Mourão-Ferreira





Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente

Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui

Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará

Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.

António Franco Alexandre

touch...


Tocas um corpo, sentes-lhe o repetido tremor sob os teus dedos, o cálido andamento do sangue. Observas-lhe o lânguido amolecimento, as suas sombras corporais, o seu desvelado esplendor. Não há palavras. Tocas um corpo; um mundo enche agora as tuas mãos, empurra o seu destino.Estira-se o tempo nos pulmões silva como um chicote rente aos lábios. As horas, o instante, detêm-se, extrais aí a tua pequena parcela de eternidade. Antes foram os nomes e as datas. A história tão clara e lúcida de dois rostos distantes. Depois aquilo a que chamas amor, talvez se transforme em promessa arrancada, muro erguido que pretende encerrar aquilo que só em liberdade pode ganhar-se. Não importa, agora nada importa. Tocas um corpo, nele te fundes, apalpas a vida, real, comum. Já não estás só.

Juan Luis Panero

hell is all mine


i 've got this soul

it's all fired up



Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele,
onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos.
Tantas vezes o suor os traz consigo da memória,
que não tenho na pele poro através do qual
eles não procurem sair quando transpiro.
A pele é o espelho da memória.


Luís Miguel Nava


Fica ao menos o tempo de um cigarro, evita comigo que este tempo ande. Lá fora são as casas, vive gente à luz de um candeeiro, o som que nos chega apagado pela distância só denuncia o nosso silêncio interrompido. Ajuda-me, faremos o inventário das coisas menos úteis, mágoas na mágoa maior do tempo. Fica, não te aproximes, nenhum dia é menos sombrio, quando anoitecer vamos ver as árvores cercando a casa.

Helder Moura Pereira




Na lista dos teus fins venho no fim
de uma página nunca publicada,
e é justo que assim seja.
Embora saiba
mexer palavras, e doer de frente,
e tenha esse talento conhecido
de acordar de manhã, dormir à noite,
e ser, o dia todo, como gente,
nunca curei, como previa, a lepra,
nem decifrei o delicado enigma
da letra morta que nos antecede.
Por muito te querer, talvez pudesses
dar- me um lugar qualquer mais adiante,
despir- te de pudor por um instante
e deixá-lo cobrir-me como um manto.

António Franco Alexandre

Despede-te de mim, bate devagar à porta, tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros, ruínas, tarefas de pão e linho, não dar nome às coisas senão o de um vago esquecimento, abandono. Despede-te de mim como se a vida recomeçasse agora, não me procures onde a memória arde e o destino se ausenta. Tudo são banalidades, afinal, quando assim se recomeça e a vida falha como um material solar e ilhéu. Levamos poucas coisas, basta um pouco de ar, os objectos fixos, em repouso, os muros brancos de uma casa, o espaço de uma mão. Arrumo as malas e os sinais, aquilo que nos adormece em plena tempestade.
Francisco José Viegas