Presença

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas, teu perfil exacto
e que, apenas, levemente, o vento das horas ponha um frémito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale subtilmente, no ar,
a trevo machucado, as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir como sinto
- em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.

Mario Quintana

SUSSURRO-TE...




ordenam-me as musas
que furte célere às minhas veias
a côr que nelas brota em catadupa.

querem que me sinta na cor do sangue.

desejam-me que vá na corrente
que o transporta até às batidas do coração.
que por lá permaneça,
fazendo do seu ritmoo cântico de sereia
que me encanta no amor.


Se tu me amas,
ama-me baixinho.

Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.

Deixa em paz a mim!

Se me queres,enfim,
.....tem de ser bem devagarinho,
.....amada,
....que a vida é breve,
.....e o amor
.....mais breve ainda.

Mario Quintana

Os ombros suportam o mundo

Os ombros suportam o mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

shiuu...


















As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen

repara...

repara, então... vê essa curva de caminho que se amplia em metáforas carnudas e húmidas... contorna-a com a ponta do dedo, só desse, e alinha-te, torna-te visível nos meus olhos fechados e espírito fremente. deixa então que o meu hálito se torne carne e aprenda contigo os segredos húmidos de sabores que escondes... assim... quando sorris como se nada se passasse. aprendo-te, pois, passo a passo, nas crateras que expões entre sedas e fumos plácidos...

obviamente anónimo

Ocultando mis miedos

Hay veces que el miedo me invade por las noches, se desliza como sombra por las paredes para acariciar con sus dedos helados los sueños que he pintado en ellos.se oculta detrás de ese temblor que recorre mis dientes como agua fría y navega por mis nervios hasta detrás de mis sienes y baja por mi espalda.
Hace recuentos de mis dudas y me muestra retratos de mis pérdidas como repasando una vida que no recuerdo haber vivido riendose de mi sorpresa, mientras mi rostro es una máscara de principe valiente que le sonríe a lo adverso, una Juana de Arco que levanta su espada ante lo inevitable con ojos brillantes.
Intento ocultar las risotadas de mis temores que se me salen por los agujeros de los bolsillos mirando al suelo y la gente me pregunta si yo alguna vez he sentido miedo.

lume



















pernoitas em mim e se por acaso te toco a memória...
amas ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas


é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves


já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes

al berto

REQUIEM II


é a minha mão,
a raiva
que prime a adaga.

corta célere a alma,
rasgando cerce
o ventre da vontade.
para que tudo se apague,
para que nada fique.

para que a morte se cumpra.

protection

Sometimes you look so small,
need some shelter
Just runnin round and round,
helter skelter
And I lean on your fears
Now you can lean on me
An that's more than love
That's the way It should be
Now I can't change the way you feel
But I can put my arms around you
That's just part of the deal
That's the way i feel


I put my arms around you
I stand in front of you
I'll take the force of the blow
Protection

I stand in front of you
I'll take the force of the blow
Protection

Massive Attack

Vago como o AMOR

Embrulhei os olhos para não mais ver:
deixei de lado os meus sonhos e parti.
Sou agora um entre milhões,
acostado e conformado com as coisas.
Destruí todos os meus receios,
encarnei em coisa nova, longe...
todas as crenças se dissiparam,
enquanto me deixo afundar e não resisto.

Deixo-me ir
(letting go)

Já não olho para trás, nem para ver o que foi bom.
Não há causa mais inútil que procurar no vazio.

A preencher os dias,
faço-o com a minha arma principal; a voz que tenho.
Muda.
Ainda há quem a oiça.

O que é o amor, afinal?

(olá amigos)
* - Ilustração feita por mim mesmo.

AUTÓPSIA DA DECADÊNCIA

Não lhe conhecemos a cara, apenas o nome e a desconfortável situação de ter nascido num corpo estranho, coisa que à maioria de nós ultrapassa o sentido.
Nascida Gisberto, deu em Gisberta por opção firme e contrariando o mundo. Talvez tenha sido essa opção que a fez viver a vida que viveu, talvez tenha sido essa que lhe tenha provocado a morte. E não foi uma morte normal, foi violenta, de excessiva violência.
Foi espancada, violentada e atirada a um poço, sabe-se que ainda viva, por um grupo de jovens atiçados por motivações que só a psicologia e a psiquiatria entendem.
Não vou aqui tecer considerações muito vastas acerca do assunto mas vejo-me obrigado a pensar na vítima primeira, a Gisberta e na vítima segunda, a sociedade.
Gisberta morreu. Está morta para sempre, facto incontornável provado pelo corpo analisado na morgue. Os miúdos que cometeram este hediondo crime foram julgados e condenados a penas de semi-internato por períodos de relativa duração, como o são todas as durações e, por fim, a instituição que os abrigava irá ser, ao que parece, objecto de processo.
O que está mal neste panorama?
O que está mal é a forma como se diz a qualquer puto que poderá, a partir de agora, espancar, violentar, assassinar, profanar o cadáver de qualquer transexual, bicha, drogado, preto, arrumador, velho, indigente, sem-abrigo, que a pena não há-de ser grande coisa. É a forma como se diz a qualquer meliante que, de ora em diante, poderá usar crianças para concretizar assaltos e danos, ataques, seja o que for.
O que está mal é ficarmos a saber que a Lei, serva da Justiça, e que deveria ser a garantia de que todos somos, efectivamente, iguais, apenas serve para nos informar que nós, a sociedade, estamos tão mortos como a Gisberta.
Agora vamos todos esquecer Gisberta se é que alguma vez a lembramos. É que ela nunca apareceu na televisão... existirá?
Adeus, Gi.