tarde demais



Queres?
(No ar, a interrogação vibra como uma onda invisível.)
Queres?
(Pelo silêncio, não sei quem és, não sei a razão em mim que te deseja.)
Queres?
(É quase de manhã e poderíamos esquecer tudo, fazer as malas, dormir finalmente.)
Queres?
(Uma porta talvez aberta para talvez um abismo ou um deus.)

Quero.
(Já não podemos fugir aos nossos olhos inimagináveis, inalcançável é o cansaço.)
Quero.
(A luz do quarto continua acesa sobre a luz da manhã, tornamo-nos artificiais.)
Quero.
(Os nossos corpos, claro, sempre os nossos corpos, sempre apenas os nossos únicos corpos.)
Quero.
(Tarde demais.)

José Luís Peixoto, Gaveta de Papéis


na primeira madrugada em que me esqueceste


desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exactas do meu rosto
as rugas, os sinais, a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor
e diz-me o que de mim amaste
noutros corpos, noutras camas, noutra pele
prometo que não choro
mas repete as palavras um dia minhas
que sem querer misturaste nas tuas
e levaste com as chaves de casa e os documentos do carro-
e largaste sobre a mesa com o copo de gin a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste

Alice Vieira


Ficávamos no quarto até anoitecer,
ao conseguirmos situar
num mesmo poema o coração e a pele
quase podíamos erguer entre eles uma parede
e abrir depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse
achar-se-iade súbito em profundas minas,
a memória das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.

Ficávamos no quarto,
onde por vezes o mar vinha irromper.
É sem dúvida em dias de maior paixão
que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.

Luís Miguel Nava

é-me indiferente...



E é-me indiferente estar aqui. Sempre que posso fujo, fujo no olhar que cegou o meu. Porque eu fujo e vou com tudo aquilo que me chama e me toca. Vou com o azul dos olhos do marçano ali da esquina, vou com as folhas das árvores no Outono da minha rua, vou com a noite à procura da manhã sobre o rio. Vou pelos arranha-céus acima e contemplo dos altos terraços o sono esbranquiçado dos mortos. Vou com o teu corpo que me desgasta a memória doutros corpos e me transforma em esquecimento… vou, vou sempre, pela humidade dos cardos presos em tua boca.


al berto



queria morrer contigo
não queria morrer de ti

prendi o amor nos meus braços
mas uma chuva de areia negra
cospe o meu sangue onde o coração

queria morrer contigo(...)
não queria morrer de ti

a noite toda tem a espessura da perda
a boca beija o batimento da terra
o medo abraça-me
e ainda é tão tarde para que morramos os dois

Pedro Sena-Lino

m.a.r.i.a




"Não se preocupa em despir o vestido...

em cada dia que passa se alheia
do bem e do mal.
Fica assim a olhar o chão...
ou fica sentada,
numa cadeira,
sentada... a gemer de mansinho.
Ou sorri vagamente para o espaço vazio
-O espaço vazio que é o seu próprio rosto -
Onde nada veio substituir o lugar
Dos gemidos roucos e intensos..."