Procura a maravilha.
Onde um beijo sabe a barcos e bruma.
No brilho redondo e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.
Eugénio De Andrade
2007
autópsia de Mia
en la otra orilla de la noche
el amor es posible
llévame
llévame entre las dulces sustancias
que mueren cada día en tu memoria
Alejandra Pizarnik
autópsia de Mia
LÍNGUA
o inevitável desejo
cansaço
e a minha altura é para ser medida
palmo a palmo pela tua mão ferida.
Ruy Belo
autópsia de Mia
Casa
Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão…
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.
(David Mourão-Ferreira)
dizer adeus
Afinal,
só os mortos sabem morrer
Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser
Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo
Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos
Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca
Nenhuma palavra
alcança o mundo,
eu sei
Ainda assim,
escrevo
Mia Couto
autópsia de Mia
É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
quando a noite se destaca
da cortina;
quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
quando a força de vontade
ressuscita;
quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia-
que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz livida,
a palavra despedida.
David Mourão Ferreira
autópsia de Mia
vem...
Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado
tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
vem
ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
vem
antes que desperte em mim o grito
de alguma terna Jeanne Hébuterne
a paixão derrama-se quando tua ausência
se prende às veias prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
vem
com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te
al berto
autópsia de Mia
Tu encostavas o teu rosto
À inquietude do meu peito
Quando eu
Não tinha mais nada para dizer
Tu encostavas o teu rosto
À inquietude do meu peito
E escutavas
O meu sangue que corria
A minha paixão lacrimejante que morria
Tu ouvias-me
Mas não me vias
Forugh Farrokhzad
autópsia de Mia
Teardrop
Love is a doing word
Fearless on my breath
Gentle impulsion
Shakes me makes me lighter
Fearless on my breath
Teardrop on the fire
Fearless on my breath
Night, night of matter
Black flowers blossom
Fearless on my breath
Black flowers blossom
Fearless on my breath
Teardrop on the fire
Fearless on my breath
Water is my eye
Most faithful mirror
Fearless on my breath
Teardrop on the fire of a confession
Fearless on my breath
Most faithful mirror
Fearless on my breath
Teardrop on the fire
Fearless on my breath
You're stumbling a little
Massive Attack
(em jeito de prenda!)
autópsia de Mia
Commuter Love
Freezing Monday morning
She is waiting for her train to come
I brush past her, smell her perfume
Watch her hair move as she turns to go
She doesn't know I exist
I'm gonna keep it like this
I'm not gonna take any risks this time
She's not like the others
With their papers and their headphones on
She reads novels by French authors with loose morals
She can do no wrong
I wouldn't say I'm obsessed
I don't wanna see her undressed
We can be prince and princess in my dream
And we're dancing
Through the evening
'Til the morning
divine comedy
autópsia de Mia
interlúdio (três pedaços de tempo antes do sussurro)
quero que meus dedos falem
a linguagem da tua pele.
em cada arrepio nascido
no que conversam, um verso.
Assim constróis o poema maior que exalo,
no precioso ritmo do teu suspiro.
e manterei sempre a tua alma
bem longe das garras dos vampiros,
até que o sol renasça.
Yo también
Yo también me canso de nadar contra corriente,
de seguir andando cuesta arriba
de seguir luchando cada día
desearía detenerme,
desprenderme
descender
renunciar
olvidar
llorar.
Yo también he sentido las ganas de escapar de todo,
contagiarme de amnesia selectiva
dormir hasta que me canse
reir hasta que me duela
reencontrarme
consentirme
liberarme
amar.
DEVOÇÃO
formulo votos
onde deposito uma ânsia frémita
perante o nascimento de cada ruga minha:
que seja alvo predilecto
do pleno ousar que me fazem alado!
que nasçam, num voo sempre firme.
frutos assumidos do meu carácter menino,
quando docemente passeia,
numa solene ousadia.
lãnguido servo
do altar dos teus contornos.
Siempre llueve cuando te vas,
aunque lo desmientan los meteorólogos
y los turistas tomando
el sol en las terrazas.
Siempre llueve una lluvia pequeña
como de sal o de ceniza,
una lluvia cortada a la medida de mis hombros
y con mismo recorrido que mis pasos.
Siempre llueve cuando te vas
aunque la gente siga caminando y se pregunte
por qué corro calle abajo
con las ropas empapadas.
Alejandra Pizarnik
autópsia de Mia
Guardo-te...
Eu deixarei que morra em mim o desejo
de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa
de me veres eternamente exausto
No entanto a tua presença é qualquer coisa
como a luz e a vida.
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto
e em minha voz a tua voz
Não te quero ter porque
em meu ser está tudo terminado.
Quero só que surjas em mim
como a fé nos desesperados.
Para que eu possa levar uma gota de orvalho,
nesta terra amaldiçoada,
Que ficou sobre a minha carne
como uma nódoa do passado.
Eu deixarei ...
Teus dedos enlaçarão outros dedos
e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu,
porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei a minha face
na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos
da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência
do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos.
Mas eu te possuirei mais que ninguém
porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar,do vento,
do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente,
a tua voz serenizada.
Vinicius de Moraes
autópsia de Mia
Um dia em que se possa não saber
Dai-me um dia branco, um mar de beladona,
um movimento
inteiro, unido, adormecido,
como um só momento.
Eu quero caminhar como quem dorme,
entre países sem nome que flutuam.
Imagens tão mudas
que ao olhá-las me pareça
que fechei os olhos.
Um dia em que se possa não saber.
Sophia de Mello Breyner
autópsia de Mia
ao guardador de todos nós
ó guardador! afasta de mim a tua dor de ver o mundo
nao tenho culpa de que vás tão fundo nessa imensidão
e que transformes todas as coisas em tão profundo
- se abraçasses de vez os sons da vida sem a razão...
ó guardador! celebra comigo as paisagens que vês
todas as sombras são apenas um repouso sem o mal
uma dádiva da natureza a um descanso sem porquês
- onde encostar a cabeça é deixar o sonho ser real...
guarda-te de ti! e não te deixes perder por dentro
olha cá para fora e deixa-te enrolar nessa ilusão
- tudo pode ser diferente se feito com sentimento
guarda-te a ti! no espaço onde tens o coração
abre os braços a tudo excepto ao ferimento
- liberta-te de ser vítima da eterna solidão
chuva...
É quando a chuva cai,
é quando olhado devagar que brilha o corpo.
Para dizê-lo a boca é muito pouco,
era preciso que também as mãos vissem esse brilho,
dele fizessem não só a música, mas a casa.
Todas as palavras falam desse lume,
sabem à pele dessa luz molhada.
Eugénio de Andrade
autópsia de Mia
perfume
(...)
será que entendes o enigma que sem saberes sou eu para ti? Será que alguma vez leste na minha pele toda a evidência, ao ponto de te embriagares, de quebrares muros, resistências, análises, trancas, algemas, receios talvez inúteis de brisas talvez fecundas?
Tu que te estatelas agora no céu de cada noite deserta, será que algum dia tornarás a ler o céu no chão? Será que em alguma papelaria escondida na cidade, encontrarei um dia um mapa para te ler sem te sufocar? Tu que me tropeças cada passo, será que tens ainda em ti, o único pulmão que já me fez respirar?
Vivo apenas uma praia oca. Nem areia tem. A primeira duna é árida e semelhante à última. Nada sei de mim. Mas sei quem tu és. És a única pergunta que não formulei. Será que ao menos sabes que eu não sei?
Manuel Cintra
autópsia de Mia
na sombra aguardava...
E na sombra aguardava o tempo numa
Longínqua, como quem flutua na última claridade e
reflecte nas margens da consciência.
Raramente trazia até si uma palavra, um nervo de luz
ou um rumor vigilante.
um desejo de espaço.
no seu pensamento.
autópsia de Mia
TRÍPTICO (breve estúdio prévio ao auto-retrato)
1.
rendam-se:
tristes contas do rosário
nascido dum par de algemas!
grilhetas evidentes
hálito de derrota.
hirtas estão,
quedam-se mudas,
sem voto de movimento.
no lado de cá. seco.
bem longe de todo o universo
onde as asas vão soar!
2.
voa música!
faz-te ao caminho
da linguagem de um poema.
tinge-me as células
que carregam uma sina prenhe
dos odores onde inalo
o sopro firme deste dia.
o dia da minha ventania!
hora sem retorno,
num movimento crepuscular,
dando o justo momento
ao rito imaculadamente sangrado
nos tons nunca difusos
lavrados em contínuos rasgos.
3.
chamam-lhe palavras.
digo-vos que sou eu!
photo by
Mark Freedom
toque...
seda extraída ao segredo - tocar e ser tocado,
sentir em si a ligeireza do fogo, a profundeza,
e estremecer, ficar em chaga;
e com dedos e sedas manter às labaredas,
entre terror e louvor, a comburente,
combustível composição de tudo:
ser queimado vivo,
ser luminoso.
Herberto Helder
autópsia de Mia
fade into you
I want to hold the hand inside you
I want to take a breath that's true
I look to you and I see nothing
I look to you to see the truth
You live your life, You go in shadows
You'll come apart and you'll go black
Some kind of night into your darkness
Colors your eyes with what's not there
Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
A stranger's light comes on slowly
A stranger's heart without a home
You put your hands into your head
And then smiles cover your heart
Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
Mazzy Star
autópsia de Mia
procuro-te...
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque com a forma de um grito de alegria.
Ou a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água
entre o azuldo prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti e o teu nome
ilumina as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre
– procuro-te.
Eugénio de Andrade
autópsia de Mia
OLHARES
ausência
Nuno Júdice
autópsia de Mia
Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.
Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guia
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.
Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.
Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva.
José Gomes Ferreira
autópsia de Mia
Dar o outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
oiço pedirem-me que escolha;
e que deixe para trás a inquietação, a dor,
um peso de não sei que ansiedade.
Mas levo comigo tudo o que recuso.
Sinto colar-se às costas um resto de noite;
e não sei voltar-me para a frente,
onde amanhece.
Nuno Júdice
autópsia de Mia
Hoje acordámos em sitios diferentes...
Eu, no meio das ruínas que se movem, das sombras que sopram,
das almas em fuga para dentro da vida.
Tu, no meio das ruínas paradas, das sombras que já não respiram,
das almas em fuga para longe da vida.
Amanhã, sempre amanhã, tentaremos acordar no mesmo sítio de sempre
e o abismo do medo e da dor irá rir-se de nós enquanto nos engole ou nos deixa passar.
Fernando Ribeiro
autópsia de Mia
Que não...
Vestia a alma por fora e paria sonhos por pura teimosia, só porque achava que devia continuar a respirar. Mas os sonhos, também teimosos por mal paridos ou por outros tropeços do caminho, iam-lhe morrendo no vôo e tapando a alma que queria ao sol. Exausta, trocou a última réstea de sonho por um lampejo do futuro que não via.
Agora sim, pode finalmente fingir que nunca existiu.
Presença
autópsia de Mia
SUSSURRO-TE...
Se tu me amas,
ama-me baixinho.
Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.
Deixa em paz a mim!
Se me queres,enfim,
.....tem de ser bem devagarinho,
.....amada,
....que a vida é breve,
.....e o amor
.....mais breve ainda.
Mario Quintana
autópsia de Mia
Os ombros suportam o mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Carlos Drummond de Andrade
autópsia de Mia
shiuu...
As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.
Sophia de Mello Breyner Andresen
autópsia de Mia
repara...
obviamente anónimo
autópsia de Mia
Ocultando mis miedos
lume
amas ou finges morrer
pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas
é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves
já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes
al berto
autópsia de Mia
REQUIEM II
protection
Sometimes you look so small,
need some shelter
Just runnin round and round,
helter skelter
And I lean on your fears
Now you can lean on me
An that's more than love
That's the way It should be
Now I can't change the way you feel
But I can put my arms around you
That's just part of the deal
That's the way i feel
I put my arms around you
I stand in front of you
I'll take the force of the blow
Protection
I stand in front of you
I'll take the force of the blow
Protection
Massive Attack
Vago como o AMOR
Deixo-me ir
(letting go)
A preencher os dias,
faço-o com a minha arma principal; a voz que tenho.
Muda.
Ainda há quem a oiça.
O que é o amor, afinal?
AUTÓPSIA DA DECADÊNCIA
Agora vamos todos esquecer Gisberta se é que alguma vez a lembramos. É que ela nunca apareceu na televisão... existirá?
Adeus, Gi.
autópsia de Carlos José Teixeira
abismo...
Antonio Lobo Antunes
autópsia de Mia