Maria do Rosário Pedreira
...
Maria do Rosário Pedreira
entre a saliva e os sonhos há sempre
uma ferida de que não conseguimos
regressar
e uma noite a vida
começa a doer muito
e os espelhos donde as almas partiram
agarram-nos pelos ombros e murmuram
como são terríveis os olhos do amor
quando acordam vazios
Alice Vieira
Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.
António Franco Alexandre
touch...
Juan Luis Panero
Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele,
onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos.
Tantas vezes o suor os traz consigo da memória,
que não tenho na pele poro através do qual
eles não procurem sair quando transpiro.
A pele é o espelho da memória.
Luís Miguel Nava
Fica ao menos o tempo de um cigarro, evita comigo que este tempo ande. Lá fora são as casas, vive gente à luz de um candeeiro, o som que nos chega apagado pela distância só denuncia o nosso silêncio interrompido. Ajuda-me, faremos o inventário das coisas menos úteis, mágoas na mágoa maior do tempo. Fica, não te aproximes, nenhum dia é menos sombrio, quando anoitecer vamos ver as árvores cercando a casa.
Helder Moura Pereira
Na lista dos teus fins venho no fim
de uma página nunca publicada,
e é justo que assim seja.
Embora saiba
mexer palavras, e doer de frente,
e tenha esse talento conhecido
de acordar de manhã, dormir à noite,
e ser, o dia todo, como gente,
nunca curei, como previa, a lepra,
nem decifrei o delicado enigma
da letra morta que nos antecede.
Por muito te querer, talvez pudesses
dar- me um lugar qualquer mais adiante,
despir- te de pudor por um instante
e deixá-lo cobrir-me como um manto.
António Franco Alexandre
tocas-me?
Claro que se tem medo que alguém nos entre pelos olhos. Mas podes arder. Para a tua temperatura sou mercúrio, linhas de mão, lábio e sopro. Atravesso-te porque me atravessas e onde somos corsários rendemo-nos ao encanto da devolução.Tu e eu à porta de um lugar que vai fechar, tudo numa árvore. Aqui onde os minutos são a rua em que nos sentamos toda a tarde à espera do silêncio, onde o teu corpo pesa a medida exacta do meu desejo. Sou um animal. Necessito diariamente da transfusão de uma enorme quantidade de calor. Tocas-me?
Vasco Gato
«Paga-me um café e conto-te a minha vida»
o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro
outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu, não, nunca choraste
por amores que se perdem
os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
E temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois
«Pago-te um café se me contares
o teu amor»
José Tolentino de Mendonça
Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria.
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros.
Olha
como só tu sabes olhar
a rua
os costumes
(...)
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso.
Mário Cesariny
if only...
nos meus lábios gretados de palavras
e amado em mim o amor que nos confunde...
um mínimo detalhe diferente
traria a cada coisa um outro eco.
António Franco Alexandre
Tell me now how should I fell
autópsia de Mia
shuu..
Vou -te agora contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois factos existe um facto, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir- nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.
Clarice Lispector
Brandamente, por vezes, te desvio
José Régio
Vou-me sentar aqui, respirar até doer
as coisas possíveis nunca reais;
aprender, nó a nó, como te soltas.
Vamos cair num poço, sem bússola e pára-quedas,
vamos ser o primeiro amor a dois no mundo.
António Franco Alexandre
autópsia de Mia
há muito que deixei aquela praia
de grandes areias e grandes vagas
mas sou eu ainda quem na brisa respira
e é por mim que espera cintilando a maré vaza
Sophia de Mello Breyner Andresen
autópsia de Mia
preciso do sonho
Al Berto
autópsia de Mia
Through your heart
Através do teu coração passou um barco
autópsia de Mia
vendem-se sentimentos
Dulce Maria Cardoso
autópsia de Mia
here is...
here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life; which grows
higher than soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart
i carry your heart (i carry it in my heart)
e. e. cummings
autópsia de Mia
autópsia de Mia
Não sabemos nada.
Nunca saberemos se os enganados
são os sentidos ou os sentimentos,
se viaja o comboio ou a nossa vontade
se as cidades mudam de lugar
ou se todas as casas são a mesma.
Nunca saberemos se quem nos espera
é quem nos deve esperar, nem sequer
quem temos de aguardar no meio de um cais frio.
Não sabemos nada.
Avançamos às cegas e duvidamos
se isto que se parece com a alegria
é só o sinal definitivo
de que nos voltámos a enganar.
Amalia Bautista
autópsia de Mia
Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.
Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.
Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.
Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva
José Gomes Ferreira
autópsia de Mia
éramos duas pessoas
autópsia de Mia
certas manhãs...
Certas manhãs chegava
esmagado pela luz
longo, frívolo, ofensivo
qualquer gesto aludia
a uma espécie de temor
a tristeza daqueles que pertencem
a lugar nenhum
Vivia tudo num instante
a solidão, os rancores
as alegrias dos outros
o silêncio do outono
Nunca o amor tocara o seu corpo
com a intensidade do medo
tornou-se parte de um rio
nem perto, nem longe
da palavra justa
Ele só pedia
"não me digam nada"
José Tolentino Mendonça
autópsia de Mia
Porque não estás aqui?
Vasco Graça Moura
autópsia de Mia
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque com a
forma de um grito de alegria.
Eugénio de Andrade
autópsia de Mia
9/11 - A Queda Inútil de Um Anjo
10 segundos entre a morte e a morte.
Foram 200 entre quase 3000 que o escolheram.
O mundo, como eles, continua a adiar o seu fim, segundo a segundo de vertigem e vôo livre.
Fotografia de Richard Drew.
***
A fotografia tem um rigor publicitário. Parece um passeio no ar, descontraído, leve, despreocupado, com a confiança de ter, sei lá, bebido um iogurte líquido qualquer com “bifinhos activos”, dos que por magia regulam o trânsito intestinal e fazem as pessoas caminhar no ar, cabeça no ar mas para baixo, um pino mais que acrobático, a demência de finalmente esvaziar a tripa da merda acumulada durante tempos e tempos de sofrimento agora resolvido no arrebentar do espartilho. O peido libertador.
Foi já dias depois deste voo que vi finalmente a fotografia de Richard Drew e, ainda estremunhado pela ocorrência, fui absorvendo as impressões que esta causou. Desde a simpática dor e repulsa provocada pelo momento suspenso que esta retrata, a morte adiada mais uns segundos, a inevitabilidade cruel contrastante com a calma aparente do passeio no ar, até a simples negação da ocorrência, como se a América não saltasse das janelas, passando pela crítica estéticoisa de jornalistas e fotógrafos, de tudo um pouco foi dito. Devo confessar que, pessoalmente, adorei a fotografia.
A verdade é que saltei, inconscientemente voluntário, preso na escolha entre o fogo que empola a pele e a faz crepitar até se tornar num torresmo disforme a cobrir um corpo que, a julgar pelos filmes que via, tende a assumir posições grotescas, e o chão onde me havia de estatelar e transformar numa amálgama de carne, ossos, baba e ranho, irreconhecível, e influenciado por todos os outros que via já a passar aéreos, quais anjos caóticos vindos de um céu vingativo de deuses doentes. Mas nunca pensei tornar-me uma figura pública, embora anónima, apenas por ter escolhido morrer dez segundos mais tarde. No entanto, compreendo a situação, cujos créditos devem ser por inteiro atribuídos ao fotógrafo, já que a minha prestação se limitou ao que podem ver: saltar.
Gostava de vos poder dizer que isto da morte é uma coisa impecável, é só paz e amor e assim. Também gostava de vos dizer que durante o voo vi o trailer da minha vida em flashback, que pensei nos meus e ainda tive tempo para uma breve oração em seu louvor e em louvor da paz mundial. Lamentavelmente, nada disso é verdade.
Em relação à morte, apenas vos posso dizer que se assemelha muito à simples preguiça que nos atinge aos domingos à tarde, com a diferença de não conseguir refastelar o corpo no sofá a ver episódios repetidos até à náusea de perdidos e investigações de crimes. Resumindo, a coisa é a simples não-existência, não inexistência porque, afinal de contas, estou aqui a contar-vos a história, mas aquela coisa límbica em que nos movemos e que estando, não estamos, assim como andar num nevoeiro perpétuo que, não cortando a luz, não deixa ver, e no qual nos movemos sem bússola e sem destino. É uma seca. Outra coisa que a morte me ensinou é que nela somos todos iguais. Uma espécie de marxismo mórbido ou anarquia infinita, em que a ordem não reina porque não há reino, nem ordem, nem nada. Somos iguais, ponto, e nem sequer sabemos quem está ao nosso lado para descobrirmos diferenças. Mais ainda: no caso específico da morte que involuntariamente escolhi, somos realmente iguais – a gravidade trata que qualquer um de nós chegue precisamente à mesma velocidade, qualquer que seja o peso, a cor, a classe social. Por estas e por outras, começa a custar-me desejar a paz universal. Estou convencido que para que tal aconteça, o mundo tem que deixar de ter seres humanos vivos.
Quanto aos meus sentimentos durante o voo, bom, posso assegurar-vos o seguinte: no momento em que os meus pés deixaram o parapeito da janela, arrependi-me imediatamente. Passados uns metros, poucos, a minha imaginação levava-me já ao chão, antevendo a massa disforme em que me iria transformar e magicando se, no contacto final com a terra que me viu nascer e que me criou e que, finalmente, me iria dar fim e guarida, iria sentir aquela picadela e roçar de ossos que senti quando parti a clavícula. Desisti de imediato, concentrando-me, tentando concentrar-me na queda em si. Mas havia o medo da dor. Penso que houve um momento em que a minha mulher e o meu filho me vieram à cabeça, pelo menos recordo-os e, sendo certo que estou morto, creio que essa recordação se deva a ter sido a última. Ou quero crer. Mas a verdade é que é mesmo a última que me lembro. Nem sequer me lembro de ter batido.
Acho que, antes de morrer, estava já morto por dentro.
Dez segundos. Aproximadamente. Os que nunca saltaram de pára-quedas devem ter alguma dificuldade em saber o que é isso. Os que já saltaram, devem ter a mesma dificuldade, já que traziam pára-quedas. Mas fechem os olhos e contem: um… dois… três… quatro… cinco… seis… sete… oito… nove… eu saltei de olhos fechados e não os abri o caminho todo. Lembro a brisa, lembro o ruído, lembro, sobretudo, o medo. Medo que gostaria que o meu filho, que gostaria que o mundo não sentisse jamais.
Ouvi dizer que foi um avião desviado por terroristas e que morreram perto de três mil pessoas. Ouvi dizer que duzentas delas saltaram comigo.
Mas ouvi dizer que milhões estão vivos, muitos deles de saúde. E isso é bom de ouvir.
Se conseguir continuar esta “aparição”, talvez possa voltar para vos contar outras coisas que descobri.
autópsia de Carlos José Teixeira
De um e outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
ouço pedirem-me que escolha;
e deixe para trás a inquietação,
a dor,
um peso de não sei
que ansiedade.
Mas levo comigo tudo
o que recuso.
Sinto colar-se-me às costas
um resto de noite;
e não sei voltar-me
para a frente, onde
amanhece.
Nuno Júdice
autópsia de Mia
o que nao te ensinarei...
E o amor transformou-se noutra coisa com o mesmo nome.
Era disto que falavam as mães quando davam conselhos
às filhas e diziam: o amor vem depois. Era isto o depois.
Uma ternura simples, quase dolorosa, muitos silêncios,
todas as horas do dia e um poema que se dissolve dentro
de mim e que, devagar, sem rosto, desaparece.
José Luís Peixoto
autópsia de Mia
Al Berto
autópsia de Mia
Al Berto
autópsia de Mia
tarde demais
Queres?
(No ar, a interrogação vibra como uma onda invisível.)
Queres?
(Pelo silêncio, não sei quem és, não sei a razão em mim que te deseja.)
Queres?
(É quase de manhã e poderíamos esquecer tudo, fazer as malas, dormir finalmente.)
Queres?
(Uma porta talvez aberta para talvez um abismo ou um deus.)
Quero.
(Já não podemos fugir aos nossos olhos inimagináveis, inalcançável é o cansaço.)
Quero.
(A luz do quarto continua acesa sobre a luz da manhã, tornamo-nos artificiais.)
Quero.
(Os nossos corpos, claro, sempre os nossos corpos, sempre apenas os nossos únicos corpos.)
Quero.
(Tarde demais.)
José Luís Peixoto, Gaveta de Papéis
autópsia de Mia
na primeira madrugada em que me esqueceste
desenha com a ponta dos teus dedos
as fronteiras exactas do meu rosto
as rugas, os sinais, a cicatriz que ficou da infância
o lento sulco das lâminas onde no peito
se enterra o mistério do amor
e diz-me o que de mim amaste
noutros corpos, noutras camas, noutra pele
prometo que não choro
mas repete as palavras um dia minhas
que sem querer misturaste nas tuas
e levaste com as chaves de casa e os documentos do carro-
e largaste sobre a mesa com o copo de gin a meio
na primeira madrugada em que me esqueceste
Alice Vieira
autópsia de Mia
Ficávamos no quarto até anoitecer,
ao conseguirmos situar
num mesmo poema o coração e a pele
quase podíamos erguer entre eles uma parede
e abrir depois caminho à água.
Quem pelo seu sorriso então se aventurasse
achar-se-iade súbito em profundas minas,
a memória das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.
Ficávamos no quarto,
onde por vezes o mar vinha irromper.
É sem dúvida em dias de maior paixão
que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.
Luís Miguel Nava
autópsia de Mia
é-me indiferente...
autópsia de Mia
queria morrer contigo
não queria morrer de ti
prendi o amor nos meus braços
mas uma chuva de areia negra
cospe o meu sangue onde o coração
queria morrer contigo(...)
não queria morrer de ti
a noite toda tem a espessura da perda
a boca beija o batimento da terra
o medo abraça-me
e ainda é tão tarde para que morramos os dois
Pedro Sena-Lino
autópsia de Mia
m.a.r.i.a
"Não se preocupa em despir o vestido...
em cada dia que passa se alheia
do bem e do mal.
Fica assim a olhar o chão...
ou fica sentada,
numa cadeira,
sentada... a gemer de mansinho.
Ou sorri vagamente para o espaço vazio
-O espaço vazio que é o seu próprio rosto -
Onde nada veio substituir o lugar
Dos gemidos roucos e intensos..."
autópsia de Mia
on se regarde
e como estrelas duplas consanguíneas,
luzimos de um para o outro nas trevas.
herberto helder
autópsia de Mia
decadencia
Resvalas neste sopro.
Sabes que tens o olhar ferido desde sempre,
que o incêndio das palavras em trânsito
celebra prescritas sílabas, ancora dos ritos,
desprevenidos equinócios.
Dantes,
havia um mar crispado na fissura dos lábios.
Hoje,
apenas algumas gotas de sal.
Albano Martins
autópsia de Mia
autópsia de Mia
allgarve - parto I
Como diz António Lobo Antunes, o Allgarve é um cenário pintado em cartão. As figuras que nele se arrastam, lá ao longe na borda de água ou pelas calhas da cidade parecem alimentadas a sonhos de paraíso temperado com cerveja morna, tais seres borbulhantes de desejo de um dolce fare niente que sabem condenado à partida, e que tentam, a todo o custo abarcar na sua plenitude, entre passeios à beira mar e shots emborcados em pose histriónica, noite fora, noite anónima.
É o Allgarve do special cream constante da fabulosa obra literária apresentada pela Governadora Civil do burgo e que consagra a proeminente figura cultural de Zézé Camarinha, o homem que «comeu» para cima de mil mulheres e que delas guarda fotos com dedicatória para exibir a qualquer pasquim que lhe apareça. É o Allgarve dos hotéis que ostentam estrelas apenas correspondentes ao preço que cobram. É o Allgarve da festa permanente e da lata de atum em conserva. O Allgarve, enfim, de todos e para todos, bem vindos sejam os que vierem por bem, que aos que venham por mal os deuses castigarão por certo; a celeridade da justiça praticar-se-á póstuma, ao ritmo do sol deste canto que parece de outro país.
E, no entanto, não há ano em que não arrume as coisas na traquitana e me ponha a caminho para lá passar uma semana. Trata-se já de uma espécie de tradição de família, esta coisa de lá ir parar. Devo confessar que me faz bem.
Não somos adeptos de grandes confusões, festas, animações em technicolor, pelo que as nossas estadias no Allgarve se traduzem mais ou menos pela seguinte fórmula: apartamento – piscina – esplanada – praia – esplanada – piscina – apartamento – saída nocturna. Esta rotina parece ser a adequada a quem não quer fazer nada, inclusivamente pensar e, aparentemente, resulta.
Existem, ainda assim, algumas coisas que me fazem pensar e uma pergunta recorrente – que reflecte a minha profunda ignorância, a par da inequívoca condição de turista – assalta-se sempre que lá estou: onde vivem os allgarvios? Não espero resposta. Não sabê-la remete-me para a mais profunda ignorância acerca daquelas pessoas, deixando-me aceder a uma espécie de fleuma muito colonialista. É nestes momentos que consigo imaginar-me dono de uma qualquer fazenda em África ou na América latina. A verdade é que esta é a única semana em que tenho uma série de pessoas que estão lá para me servirem. Isso, o calor, as vias e os prédios mal enjorcados, a lentidão dos processos, a vida em câmara lenta, tudo isso junto me transporta para uma dessas situações em que, de fato de linho e panamá na cabeça, aceno ao empregado que, sorridente, me traz um copo e uma garrafa de uma qualquer bebida com álcool, mais os fósforos para o charuto que acendo em atitude contemplativa da descarga de mais um navio que chega. Por favor, não me interpretem mal. Ou façam-no, se preferirem. Ou se acharem interesse nisso.
Quanto ganhará um allgarvio? Pouco, decerto. Mas até isso parece dar colorido à história: afinal, de que me serve ir de férias se não tiver a impressão de ser rico? Sabendo, como sei com toda a certeza, que não hei-de misturar-me com o jet set (ok, o termo é abusivo, eu sei) em outro local que não seja a auto-estrada, sirvo-me desta triste oposição.
A realidade dos allgarvios parece ser esta, a de um povo eternamente colonizado por pessoas de fato de linho e panamá na cabeça, fumando charutos ostensivos e emborcando uns copos enquanto observam o trabalho mal pago, quando pago.
Trabalham de dia. Fazem biscates à noite. São portugueses, brasileiros e alguns outros de tez escura. O pouco que ganham serve para pagar o supermercado a preço de turista. Vivem nos arredores, em locais incógnitos. Movimentam-se nas ruas sorridentes «best drinks for you!» ou entre mesas «thank you sir, come again!». Cantam canções cabotinas dos pimba ingleses «sweet caroline» nas esquinas dos bares, de olho na camone bêbeda. «Clutching at Straws».
E eu, nós, movemo-nos no pitoresco da coisa, na apreciação das artes de vida, fotografamos e recordamos, fingindo não reparar em putos que se movem na noite pegajosa de mãos alarves. Somos simples, assim… «Lembras-te deste ano? O fulano que estava à porta daquele bar a cantar canções do Cat Stevens? E a inglesa da mesa ao canto?».
E os turistas continuam às voltas na marina de Vilamoura, sempre às voltas. Continuam a serpentear as ruas nocturnas entre canecas de cerveja. Continuam a arrastar-se à borda de água como lagostas suadas. Continuam a pagar, muito, sem pensar por um instante para onde irá esse dinheiro. Não lhes cabe a eles pensá-lo, afinal estão de férias.
As praias allgarvias são praias de calor e claridade, de cheiro a bronzeador e gritos de crianças. Estas praias são a razão da nossa ida anual ao Allgarve, já que em terras nortenhas, se bem que haja claridade e calor, já das águas não se poderá dizer o mesmo – embora deva confessar que, mesmo no Allgarve, será necessária alguma sorte para me apanhar em ambiente aquático, não porque não goste, que adoro, mas porque ainda assim a água me parece fria na maioria das vezes. As águas allgarvias são mais quentes alguns graus que as nortenhas e propiciam longos banhos restauradores do corpo que, debaixo do sol agressivo, parece empolar até estalar.
Uma das coisas que mais aprecio quando em férias nessas praias é a caminhada matinal, sem pressas, ao longo da linha da água, altura em que é permitido inspirar sem os cheiros agressivos que começarão a aparecer lá mais para o meio da manhã. Está mais calma, a praia, por essas horas, sendo possível apreciar devidamente a beleza da paisagem, coisa lunar em pleno dia de um lado, coisa aquática e apelativa por outro, descontado que fique o assassínio praticado pela construção à borda de água, sintoma da permissividade com que sucessivas administrações da região têm encarado a actividade. Mas concentro-me na paisagem, autêntico calmante e anti-depressivo, forma revigorante de arquitectura natural, quase a atestar uma presença divina de inspiração anárquica no seu conceito de arte.
De cada vez que acabo uma semana allgarvia, fica-me a impressão gravada de passos na areia. Talvez seja esta, acima de todas as recordações de férias allgarvias, a que mais claramente me assoma à lembrança de cada vez que esta me ocorre. E posso, por artes que desconheço, distinguir claramente as pegadas na areia impressas em 1998 das de 2006, por exemplo, embora possa mesmo esquecer-me do local onde estive. E se lembro coisas indubitavelmente mais importantes, como as férias de 1987 – as gaivotas que levantavam em debandada após a nossa noite não dormida mesmo ali na areia, registadas naquele rolo fotográfico que se perdeu, é um das imagens que não hei-de esquecer nunca -, subsiste a imagem de dois pares de pegadas paralelos, um par de pegadas descalças, outro de botas, que se entrecruzam, rodopiam, correm por vezes, até caírem e acabarem numa anarquia de areia revolta.
Costumo dizer que cada um de nós deve deixar a sua assinatura no mundo. Ainda não consegui deixar uma que se veja mas, entretanto, vou deixando pegadas por aí que, tais mandalas pacientes de um monge libertino, se desvanecem no tempo entre as vagas que se renovam.
São estes momentos que se transformam em imagens que me ligam ao Allgarve, mais do que as noites quentes de cerveja ou a cacofonia das ruas ou a allgaraviada em que me falam.
Mas há algo que as praias nortenhas têm, que as allgarvias não conseguem. Existe algo de real, de palpável nas praias do norte, uma coisa qualquer que as transforma em algo de nós, ou nos transforma em algo delas. Tem a ver com a realidade.
Numa praia nortenha, sentados entre o sargaço que vem dar à costa, sentimos a presença indiscutível do mar, ali em frente, rugindo, arrastando, salgando a areia com impetuosidade. O cenário não é já de cartão, as figuras – também aqui marionetas que cedem ao fascínio do sol – são diferentes na sua identidade, desaparecem as lagostas que se arrastam para dar lugar a uma outra espécie, a dos animais saltitantes que gritam, gesticulam, estrebucham, falam alto, mandam vir por tudo e por nada. Parecem ter nascido para importunar.
E são as rochas entre as quais o mar tenta desbravar caminho que nos centram o olhar e deixam que os olhos se prendam num singular movimento hipnótico ao sabor das ondas, até só se escutar o barulho da água. O horizonte tem pôr-do-sol em tons que se iniciam no azul, passam pelo esverdeado, se transformam ali mais acima numa espécie de laranja fogo, e retomam a ordem, já inversa, céu acima, por uma ou duas horas.
Foi numa dessas praias, quando sentados na areia à beira de água, reparei na maresia e disse «Estás a ver? É isto que falta no Allgarve: a maresia.» Ela concordou, olhando o mar, virando a cara para o sol alto e inspirando fundo. Eu olhei uma vez mais para o mar, bem lá para o fundo do horizonte, percorri-o com o olhar até às rochas que, ali à minha frente cortavam os resquícios de ondas que assomavam os nossos pés. Inspirei também, bem fundo e, pela primeira vez, um pensamento escondido tomou forma viva, parecendo abrir caminho por entre os meus pulmões, atropelando tudo o que à frente surgisse, tomando a forma de um indisfarçável suspiro entrecortado, para sair, mudo, ou talvez num leve movimento de lábios. «Preciso de ser livre.»
É este tipo de depressão pós-férias em que me encontro agora. Chegado de um mundo cinematográfico paralelo, em slow-motion, enfrento uma vez mais o tempo real, multitasked multiplexed a que a exigência de um vencimento mensal me obriga.
Sendo da opinião de que todos nós, na medida do possível, devemos contribuir com algo útil para a sociedade que nos alberga, sou, no entanto, obrigado a confessar a minha mais profunda preguiça. Não gosto de trabalhar.
Entendo o trabalho como algo que se faz em troca de uma sobrevivência básica. Não o entendo como produção de algo, isso é outra coisa. Entendo o trabalho como algo a que sou, por necessidade, obrigado a fazer. Gosto de fazer coisas, de produzir, de obter resultados, apenas e só enquanto a actividade me interessar. A partir do momento em que se torna rotina, passa a ser trabalho. No linguarejar profissional, sou o que se chama pomposamente um “homem de projectos”, o que equivale a dizer que sou daqueles tipos que gostam muito de ter ideias, de planear o trabalho, de colocar as coisas em marcha e depois deixar outros a fazer as coisas.
E quem não é assim?
O único facto lamentável em tudo isto é o de existirem realmente pessoas que fazem disso profissão e eu não ser uma delas, pelo que sou forçado a limitar-me diariamente ao ganha-pão automático. Mas tenho uma vidinha santa, em comparação à grande maioria. O que não me serve absolutamente para nada.
Assisti em tempos, numa conferência, à intervenção de um especialista em coaching que, entre outras ilusões, apregoava que devemos ser já o que pretendemos ser no futuro. Explicando, ele exemplificou com o caso de alguém que sendo, por exemplo, gestor, e querendo ser, por exemplo, escritor, deveria desde já, de imediato, passar a apresentar-se como escritor a quem lhe perguntasse o que faz na vida. Mesmo sem uma linha escrita, nada o impediria de se sentir um escritor, ainda que com essa particularidade de não ter – ainda – publicado um escrito. Segundo o orador, seria essa espécie de compromisso para com ele próprio que, assumido publicamente, o faria tornar-se um escritor.
Esta espécie de teoria não é totalmente ridícula e poderá até resultar em certa medida. No meu caso, não resultaria nunca pois nem sequer sei bem o que diria que sou. Escritor? Este texto é um claro exemplo do que não devo dizer que sou.
Um outro caso estranho de auto-motivação que conheci é o de um mecânico com quem trabalhei em tempos que, de cada vez que se encontrava desempregado – e foram algumas –, tratava de engravidar a mulher. Segundo ele, este era o incentivo máximo para arranjar trabalho, fosse ele qual fosse. Absurdo mas real. Tinha, quando lhe perdi o contacto, um rancho de filhos.
«Preciso de ser livre.» Livre de quê? Dos cenários de cartão do Allgarve ou da realidade das praias nortenhas? Ser livre das pegadas que traço ou da maresia que me traz de volta a casa?
Feitas as contas, talvez a única coisa de que necessite de ser livre seja de mim próprio.
E que fazer? Dizer já que sou o que quero ser? Arranjar obrigações urgentes que me obriguem a tomar uma atitude?
Creio que nem uma coisa nem a outra poderia resolver o que quer que fosse. Não sei o que quero ser e não tenho espaço em mim para mais obrigações.
autópsia de Carlos José Teixeira