10 segundos entre a morte e a morte.
Foram 200 entre quase 3000 que o escolheram.
O mundo, como eles, continua a adiar o seu fim, segundo a segundo de vertigem e vôo livre.
Fotografia de Richard Drew.
***
A fotografia tem um rigor publicitário. Parece um passeio no ar, descontraído, leve, despreocupado, com a confiança de ter, sei lá, bebido um iogurte líquido qualquer com “bifinhos activos”, dos que por magia regulam o trânsito intestinal e fazem as pessoas caminhar no ar, cabeça no ar mas para baixo, um pino mais que acrobático, a demência de finalmente esvaziar a tripa da merda acumulada durante tempos e tempos de sofrimento agora resolvido no arrebentar do espartilho. O peido libertador.
Foi já dias depois deste voo que vi finalmente a fotografia de Richard Drew e, ainda estremunhado pela ocorrência, fui absorvendo as impressões que esta causou. Desde a simpática dor e repulsa provocada pelo momento suspenso que esta retrata, a morte adiada mais uns segundos, a inevitabilidade cruel contrastante com a calma aparente do passeio no ar, até a simples negação da ocorrência, como se a América não saltasse das janelas, passando pela crítica estéticoisa de jornalistas e fotógrafos, de tudo um pouco foi dito. Devo confessar que, pessoalmente, adorei a fotografia.
A verdade é que saltei, inconscientemente voluntário, preso na escolha entre o fogo que empola a pele e a faz crepitar até se tornar num torresmo disforme a cobrir um corpo que, a julgar pelos filmes que via, tende a assumir posições grotescas, e o chão onde me havia de estatelar e transformar numa amálgama de carne, ossos, baba e ranho, irreconhecível, e influenciado por todos os outros que via já a passar aéreos, quais anjos caóticos vindos de um céu vingativo de deuses doentes. Mas nunca pensei tornar-me uma figura pública, embora anónima, apenas por ter escolhido morrer dez segundos mais tarde. No entanto, compreendo a situação, cujos créditos devem ser por inteiro atribuídos ao fotógrafo, já que a minha prestação se limitou ao que podem ver: saltar.
Gostava de vos poder dizer que isto da morte é uma coisa impecável, é só paz e amor e assim. Também gostava de vos dizer que durante o voo vi o trailer da minha vida em flashback, que pensei nos meus e ainda tive tempo para uma breve oração em seu louvor e em louvor da paz mundial. Lamentavelmente, nada disso é verdade.
Em relação à morte, apenas vos posso dizer que se assemelha muito à simples preguiça que nos atinge aos domingos à tarde, com a diferença de não conseguir refastelar o corpo no sofá a ver episódios repetidos até à náusea de perdidos e investigações de crimes. Resumindo, a coisa é a simples não-existência, não inexistência porque, afinal de contas, estou aqui a contar-vos a história, mas aquela coisa límbica em que nos movemos e que estando, não estamos, assim como andar num nevoeiro perpétuo que, não cortando a luz, não deixa ver, e no qual nos movemos sem bússola e sem destino. É uma seca. Outra coisa que a morte me ensinou é que nela somos todos iguais. Uma espécie de marxismo mórbido ou anarquia infinita, em que a ordem não reina porque não há reino, nem ordem, nem nada. Somos iguais, ponto, e nem sequer sabemos quem está ao nosso lado para descobrirmos diferenças. Mais ainda: no caso específico da morte que involuntariamente escolhi, somos realmente iguais – a gravidade trata que qualquer um de nós chegue precisamente à mesma velocidade, qualquer que seja o peso, a cor, a classe social. Por estas e por outras, começa a custar-me desejar a paz universal. Estou convencido que para que tal aconteça, o mundo tem que deixar de ter seres humanos vivos.
Quanto aos meus sentimentos durante o voo, bom, posso assegurar-vos o seguinte: no momento em que os meus pés deixaram o parapeito da janela, arrependi-me imediatamente. Passados uns metros, poucos, a minha imaginação levava-me já ao chão, antevendo a massa disforme em que me iria transformar e magicando se, no contacto final com a terra que me viu nascer e que me criou e que, finalmente, me iria dar fim e guarida, iria sentir aquela picadela e roçar de ossos que senti quando parti a clavícula. Desisti de imediato, concentrando-me, tentando concentrar-me na queda em si. Mas havia o medo da dor. Penso que houve um momento em que a minha mulher e o meu filho me vieram à cabeça, pelo menos recordo-os e, sendo certo que estou morto, creio que essa recordação se deva a ter sido a última. Ou quero crer. Mas a verdade é que é mesmo a última que me lembro. Nem sequer me lembro de ter batido.
Acho que, antes de morrer, estava já morto por dentro.
Dez segundos. Aproximadamente. Os que nunca saltaram de pára-quedas devem ter alguma dificuldade em saber o que é isso. Os que já saltaram, devem ter a mesma dificuldade, já que traziam pára-quedas. Mas fechem os olhos e contem: um… dois… três… quatro… cinco… seis… sete… oito… nove… eu saltei de olhos fechados e não os abri o caminho todo. Lembro a brisa, lembro o ruído, lembro, sobretudo, o medo. Medo que gostaria que o meu filho, que gostaria que o mundo não sentisse jamais.
Ouvi dizer que foi um avião desviado por terroristas e que morreram perto de três mil pessoas. Ouvi dizer que duzentas delas saltaram comigo.
Mas ouvi dizer que milhões estão vivos, muitos deles de saúde. E isso é bom de ouvir.
Se conseguir continuar esta “aparição”, talvez possa voltar para vos contar outras coisas que descobri.
4 comentários:
... que me lembro como se tivesse sido ontem
beijo................SSSSSS.
:-) quisses!
não sei se o K é o CJT ....que apareceu em Wadi Rum...(achei que podia ser)...se sim....obrigada. Tenho pena que ache que "piorou" mas se calha até será verdade..:)_______
se não....desculpe o comentário.
:)
reitero o beijo.
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