Custódio

Os doentes crónicos, também chamados de evolução prolongada ou residentes, partilham a unidade com os agudos, os temporariamente internados, à espera de alta hospitalar. Os crónicos, esses, só saem mediante “alta divina” – quando Deus quiser.
Custódio Zorro já conhece a data da sua: “Ouço uma voz que me diz que vivo até aos 294 anos”.
O “Músculos”, assim apelidavam este alentejano quando trabalhou nas obras em Lisboa, soma 61 anos de vida e 21 de internamento. Atira as culpas para os 27 meses de comissão no Ultramar, em Angola. “Foi difícil, não sei explicar”, esquiva-se, olhos húmidos colados ao chão, à procura de uma resposta.
Em 1972, quando voltou à Metrópole não tinha rédea nos nervos. Começaram os internamentos intermitentes.
“Atirei-me para um poço. Não me queria matar mas fui obrigado a isso porque as vozes diziam – atira-te ao poço! Despi-me, fiquei só em trusses e camisola interior”.
Na cabeça de Custódio estão trancadas vozes há mais de 30 anos. “Elas têm sido más. Dizem atrocidades em relação a mim. Tenho a impressão de que é o radar do Vaticano, ouço a voz do Santo Padre, do Papa João Paulo II, ouço a voz dele, ouço a voz do Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo. Dizem-me coisas de que não sou apreciador, chamam-me homossexual”.

O drama de Custódio Zorro é saber que o que se passa na sua cabeça não é real, mas não compreender como escuta, de facto, uma impossibilidade.



No Miguel Bombarda o impossível está sempre a acontecer.
O homem que passeia pelo hospital com as mãos às cambalhotas como um malabarista, está é mesmo a puxar o intestino para fora da barriga, escoltado pela sua múmia de estimação. A Rainha de Portugal sai de vez em quando para ir ao banco reclamar o seu dinheiro, seu por poder legítimo e título. O primo do ex-líder dos socialistas espanhóis, Felipe Gonzalez, reivindica o direito dos doentes à dignidade e ao respeito. O verdadeiro noivo da Rainha Isabel II de Inglaterra marcha de um lado para o outro, sempre apressado, queixo erguido, cabelo puxado para trás, barba branca, algum orgulho ferido: em 1957 planeou matar o Duque de Edimburgo, o homem que lhe roubou a amada mas internaram-no no hospital antes que tivesse a hipótese. Até hoje.

“A esquizofrenia é o paradigma da doença mental: a pessoa não se sente doente, quem está doente é o outro. É uma doença que aparece na juventude – e quanto mais cedo pior. Faz-me lembrar A Metamorfose do Kafka: as pessoas acordam e são uma borboleta. E falam com uma convicção inabalável. De facto, é impossível dialogar com elas”, explica João Sennfelt, psiquiatra há 33 anos no Hospital Miguel Bombarda.

0 comentários: