Apertando-te nos braços
Jacques Prévert
puras
Antes ela que esta hora sempre enevoada estas terríveis carruagens de
labaredas frias
Estas pedras sorvadas
Antes este coração engatilhado
Que este charco de murmúrios
Este pano branco a cantar ao mesmo tempo na terra e no ar
E esta benção nupcial que une o meu rosto ao da total fatuidade
Antes a vida
Antes a vida com os seus lençóis de esconjuro
As suas cicatrizes de fugas
Antes a vida antes esta rosácea no meu túmulo
A vida da presença só da presença
Onde uma voz diz Estás aí outra responda Estás aí
Eu pobre de mim não estou
E mesmo quando jogarmos ao que fazemos morrer
Antes a vida
Antes a vida antes a vida infância venerável
A faixa que parte dum faquir
Parece o escorregadouro do mundo
Não importa que o sol não passe de um destroço
Por pouco que o corpo da mulher se lhe compare
Pensas tu ao contemplar a extensão da trajectória
Ou tão-só ao fechar os olhos sobre a tormenta adorável que se chama a tua
mão
Antes a vida
Antes a vida com as suas salas de espera
mesmo sabendo não ir entrar nunca
Antes a vida que estas estâncias termais
Onde o serviço é feito por coleiras
Antes a vida adversa e longa
Quando aqui os livros se fecharem sobre estantes menos suaves
E lá longe fizer mais que melhor fizer livre sim
Antes a vida
Antes a vida como fundo de desdém
A esta cabeça já de si tão bela
Como antídoto da perfeição aspirada e temida
A vida a maquilhagem de Deus
A vida como um passaporte virgem
Ou uma vilória como Pont-à-Mousson
E como tudo foi dito já
Antes a vida
André Breton
sem palavras minhas e sem os sonhos,
fáceis, e sem as outras falsidades.
Numa espécie de morte mais terrível
ser de mim despojado, ser
abandonado aos pés como um vestido.
Sem pressa atravessar a asfixia.
Não vergar. Suster o peso da hora.
Até soltar sua canção intacta.
Cristovam Pavia
Samuel Beckett
até que o vento amaine
e o ar desconhecido nos comece a envolver,
até que o jogo de luz e sombra,
...de verde e azul,
nos mostre as estruturas antigas
e estamos em casa,
na máquina do mundo, à impotência do riso
contra tudo o que não sabemos mudar:
a morte, o egoísmo, o levadiço coração
humano. Porque não há mais nada (ok,
há o amor – vai-te foder) e nos negócios
da razão o pessimismo é a moeda
do momento. Regressemos ao ruído,
à sombria comissão liquidatária
desta fábrica de trapos coloridos.
Se não há melhor emprego para a culpa
e os domingos custam dias a passar.
Que silêncio tão grande. No interior do silêncio mais silêncio e no interior do mais silêncio um relógio minúsculo a anunciar
– Já é tarde, já é tarde
de forma que nem reparamos nos ponteiros. Para quê se o relógio insiste
– Já é tarde, já é tarde
e nós a olharmos uns para os outros, inquietos
– O que diz o relógio?
apesar de termos ouvido perfeitamente a sua vozinha apressada, nós de súbito com medo
– Tarde?
e o que significa tarde meu Deus, o que pretende o relógio? Mesmo tapando as orelhas com as mãos a teimosia permanece
– Já é tarde
mesmo não escutando mais nada escutamos o
– Já é tarde
não sabemos se no relógio se no interior da gente, olhamos em volta, olhamos para dentro à procura, achamos episódios antigos, um triciclo, um avô a espantar-se
– O que tu cresceste
um colar de pérolas
(de quem?)
numa tacinha, achamos a nossa vida de hoje e qual o sentido da nossa vida de hoje, o que fazemos com ela, dias atrás de dias, o supermercado, o jantar no restaurante aos domingos, a maçada das crianças às vezes e não era bem isto que nos apetecia, não era bem isto o que tínhamos desejado, falta qualquer coisa, onde é que errámos, o que falhámos, não somos infelizes mas também não temos o que secretamente ansiávamos, os anos vão passando ...
... (– o que tu cresceste)
e não temos o que secretamente ansiávamos, de vez em quando momentos tão vazios, de vez em quando, mesmo no meio dos outros, uma solidão tão grande, um desamparo, uma sensação de queda, esta dificuldade em respirar, porque a mobília sufoca, que vem e desaparece e volta, de vez em quando, sem motivo, vontade de chorar, não lágrimas grandes, não soluços, uma coisa vaga, uma pergunta
– E agora?
sem resposta, caras familiares que se tornam estranhas, se te abraçar continuo sozinho, o que se passa comigo, o que se passa connosco, o relógio prossegue
– Já é tarde
monótono, acusador, implacável, os objectos quietinhos sem nos ajudarem
– Porque não nos ajudam?
Nada nos ajuda, é tarde, tentamos conversar e é tarde, fazemos amor e é tarde apesar de termos feito amor na esperança que não seja tarde e depois, em lugar do prazer, ou misturado com o prazer, ou mais forte que o prazer, uma espécie de amargura que persiste, se não dilui, persiste, o
– E agora?
sem resposta aumenta, um
– E agora?
imenso, que horror, um
– E agora?
que nos preenche inteiros, se nos pegassem ao colo, fugissem connosco, nos garantissem
– Não é tarde ainda
e pudéssemos acreditar que não é tarde ainda, tranquilizar-nos afirmando
– Não é tarde ainda
embora cientes que mentimos
– Não é tarde ainda
e tornar a mentira verdade, que outra coisa fizemos para além de tentarmos transformar as mentiras em verdades, não há ninguém mais crédulo que um desesperado
– O que tu cresceste
e em que direcção cresci que não dou por ter crescido, lá está o triciclo, lá está o avô, lá está o colar, os frascos de perfume que cheirávamos às escondidas, os cigarros que fumávamos secretamente no quintal, cresci para onde, cresci como, se nos metermos no carro, se almoçarmos fora, se te pegar na mão melhoramos e contudo ficamos parados a teimar no silêncio
(que silêncio tão grande)
– Já é tarde
e não é o relógio, somos nós
– Já é tarde
não noite ainda e contudo tão tarde, aproximamo-nos da janela, os prédios do costume na rua
(esperavas outros prédios, outro bairro?)
e tão tarde, ganas de apanhar aquele cinzeiro e quebrá-lo no chão, de que serve apanhar aquele cinzeiro e quebrá-lo no chão, no espelho a nossa cara
– O que tu cresceste
diferente, a nossa cara e diferente, porquê diferente, o que é isto nos olhos, o que é isto na boca, a boca a ecoar
– Tarde
tal como os olhos ecoam
– Tarde
todo o corpo a afirmar
– Tarde
e quando o
– Tarde
diminui, o
– E agora?
a dilatar-se nele, o
– E agora?
imenso, sentamo-nos no sofá com uma revista, o jornal, um livro e as mãos vazias, apertamo-las uma na outra, espreitamos o triciclo, a certeza que se pedalássemos muito depressa não seria tarde, pedalar mais depressa que o relógio, os episódios antigos, aquela parente que nos oferecia rebuçados cujo papel não descolava e se nos prendia aos dentes, tentávamos retirar o papel com a unha e não saía, ainda nos lembramos do gosto do papel na língua, largamos a revista, o jornal, o livro, e ficamos no sofá, tanto tempo passado, com o papel na língua, a mastigá-lo, a mastigá-lo, a mastigá-lo, no fundo da gente nós mesmos a acusarmo-nos
– Porque me tornaste nisto?
o silêncio aumentou tanto que o relógio se calou, uma palma no nosso ombro
– O que foi?
e construímos peça a peça um sorriso difícil
(custa tanto um sorriso)
que responde por nós
– Não foi nada.
António Lobo Antunes
parfois...
a cantigas dos búzios e do mar.
e a verde tentação de naufragar.
Quem me quiser há-de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
à saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.
Quem me quiser há-de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.
Quem me quiser há-de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.
Quem me quiser há-de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.
Rosa Lobato de Faria
sótão:
era ali que o mundo começava.
Ainda não sabias, então,
quantas letras te seriam
necessárias para soletrar
o alfabeto dos dias, para encher
a tua caixa de música, a tua concha
de areia.
E ainda
o não sabes hoje.
Com cinza
nada se escreve a não ser
as vogais do silêncio.
E este
é o nome que se dá à ausência,
quando a noite e a poeira
dos astros pousam
sobre a ranhura dos olhos.
Albano Martins
Como um respirar
as duas mãos cheias de luz –
as estrofes da noite, as agitadas
águas batem de novo nas orlas
da margem, no sono cru,
sem olhos, dos animais no canavial
depois do abraço – então
voltamo-nos para a encosta
lá fora, contra o céu
branco que desce
frio sobre o
monte, a cascata de brilhos,
e cristaliza, gelo,
como caído de estrelas.
Na tua fronte
quero viver o pequeno
tempo, esquecido,
o meu sangue pelo teu coração.
Johannes Bobrowski
Me miras, de cerca me miras, cada vez más de cerca y entonces jugamos al cíclope, nos miramos cada vez más de cerca y nuestros ojos se agrandan, se acercan entre sí, se superponen y los cíclopes se miran, respirando confundidos, las bocas se encuentran y luchan tibiamente, mordiéndose con los labios, apoyando apenas la lengua en los dientes, jugando en sus recintos donde un aire pesado va y viene con un perfume viejo y un silencio. Entonces mis manos buscan hundirse en tu pelo, acariciar lentamente la profundidad de tu pelo mientras nos besamos como si tuviéramos la boca llena de flores o de peces, de movimientos vivos, de fragancia oscura. Y si nos mordemos el dolor es dulce, y si nos ahogamos en un breve y terrible absorber simultáneo del aliento, esa instantánea muerte es bella. Y hay una sola saliva y un solo sabor a fruta madura, y yo te siento temblar contra mí como una luna en el agua.
Julio Cortázar
Ceci est mon cœur
Eu quero um colo, um berço, um braço quente em torno ao meu pescoço, uma voz que cante baixo e pareça querer me fazer chorar. Eu quero um calor no inverno, um extravio morno de minha consciência e depois sem som, um sonho calmo, um espaço enorme, como a lua rodando entre as estrelas.
Bernardo Soares
C'est un bon cœur.
I took a deep breath
and listened to the old bray of my heart.
I am.
I am.
I am.
Sylvia Plath
quando ele corre
dentro de nós.
Jorge Sousa Braga
Se te pergunto o caminho,
falas-me das rochas que mortificam o dorso das montanhas;
e do ranger da água no galope dos rios;
e das nuvens que coroam as paisagens.
Contas que a noite geme nas fendas dos penhascos
porque as cidades apodrecem junto às margens;
que o vento é um chicote que desaba os chapéus;
que a terra treme, que o nevoeiro cega;
e que as casas onde o medo se extinguia na longa bainha do
vestido da mãe cederam ao peso das mágoas dentro delas.
E, se assim mesmo quero ir, dizes que os meus passos
se perderiam no comprimento das sombras – que não há
mapas para os sonhos de quem morre de amor;
e que os ramos debruçados dos muros em ruínas rasgariam
a carne – como um sorriso rasga o tecido de um rosto.
Se não me amas, porque me avisas da dor?
Maria do Rosário Pedreira
Passo o teu nome da minha boca para este lugar de papel.
E assim tu vens, menina do rio, louca e desastrada,
nessa tua canoa de silêncios, a entrar no poema.
Mãos em existência felina e respirando sem pausas.
Voltas a cabeça para o lado da luz e abre-se devagar
o talento incendidado do teu rosto.
(...)
Se existe uma chave,
se existe uma chave que não derreta na boca,
se existe uma boca capaz de se abrir para outra boca,
então eu amo,
Então tu saltas e arrastas contigo toda a terra.
Convidas-me para o teu corpo no gesto
sem mágoa
de um ombro que se expõe.
Tens anos de combustão solar, e moves-te assim:
tocando simultaneamente o resgate e o perigo.
Ah forte como a loucura é o amor,
o amor como a electricidade dos campos.
O amor-pirâmide, o amor-trevo-de-quatro-folhas,
o amor-moeda-achada-no-chão.
Não digas sorte, diz privilégio.
Não peças perdão, pede chuva.
Não recues, assombra-te.
(...)
A minha alegria é um aroma de tangerina nos dedos,
comer aos gomos a paisagem e limpar depois
a boca à manga do espanto.
Tu puxas-me e somos duas crianças num trilho de mata,
num banco de pedra, num portão verde
dividindo o aqui e o ali.
Porque nós estamos aqui.
Aqui onde te entrego os meus bolsos,
e - repara - as tuas mãos cabem.
Nós estamos aqui.
Menina do rio na tua canoa de silêncios, a tua voz
enrola-se na minha voz como prédios e sombra numa cidade,
como leite e açúcar na infância, como o destino de um navio.
Atravesso quilometricamente a pobreza deste reino para te ver,
para te ver uma bússola de neve, uma corda vermelha,
a destreza de um telhado através dos dias.
Tu não precisas falar uma outra língua,
o persa é uma língua que nos chega!
Tu não precisas oferecer-me portas e milhares de portas,
basta que apareças.
Que apareças nesta fogueira de bruxas,
na inquisição canina de uma época longe, muito longe,
dolorosamente longe da magia de um homem e de uma mulher.
Nós estamos aqui para arder pelo nosso corpo completo.
Tu e eu, leões estirados ao sol,
harpa para os nossos dedos quentes,
poema numa sala de lâminas.
Nós estamos aqui para fugir,
nós estamos aqui para chegar de vez.
Vasco Gato
Seulement et rien de plus
evitamos o toque, há risco de contágio;
por mais que preservemos a franqueza
passou o estágio já da frontal alegria:
estamos bem, obrigada, embora aquém
de antes - entretanto admitimos não
saber, e enquanto resta isto indefinido,
mesmo com luvas, pinças de parafina,
não sondamos mais, sob pena de crescer
um quisto nesse incisivo sítio, onde
achámos, sem tacto que menos doía
Margarida Vale de Gato
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes
Sophia de Mello Breyner
Não te construo, constróis-me, construo-te. Construo-te, mar. Aqui onde o sol se acende em carne,onde a casa é um nome de mar,e os frutos e os espelhos amadurecem o corpo solidário. Aqui tu és lenta verdade no sossego do sangue: circulação de nomes e de peixes.
Esta ciência de inocência e água se toco, delicado, ou pão ou página,ou corpo, ou fruto, ou verde folha, este pisar que é duro e leve, a frescura e a sombra, o ar, a luz.Tudo me dás.Tudo te dou. Tudo nos damos.
E a terra mais próxima e as ervas e os bichos translúcidos entre pedras, a serena eclosão dos nomes, cabeleira sobre o corpo fresco, intenso e nu. Verdade ainda mais próxima dos tranquilos campos. Paz que se alonga às searas por um corpo amado, renhidamente amado entre a verdura na noite de estrelas claras e estáticas.
Sobrio
o teu corpo me pede penetração, nomes puros: os de boca, braços, mãos sobre a terra e sobre os muros.
Sobrio
o teu corpo me pede nomes justos, nomes duros: os da terra, fogo e punhos, claros, acres, escuros.
António Ramos Rosa
Eles olhavam e não a viam.
Não basta estender as mãos vazias para o corpo mutilado,
acariciar-lhe os cabelos e dizer: Bom dia, meu Amor.
Parto amanhã.
Não basta depor nos lábios inventados a frescura de um beijo
doce e leve e dizer: Fecharam-nos as portas. Mas espera.
Não basta amar a superfície cómoda, ritual, exacta nos con-
tornos a que a mão se afeiçoa e dizer: A morte é o caminho.
Não basta olhar a Amante como um crime ou uma injúria
e apesar disso murmurar: Somos dois e exigimos.
Não basta encher de sonhos a mala de viagem, colocar-lhe as
etiquetas e afirmar: Procuro o esquecimento.
Não basta escutar, no silêncio da noite, a estranha voz dis-
tante, entre ruídos de música e interferências aladas.
Não basta ser feliz.
Não basta a Primavera.
Não basta a solidão.
Daniel Filipe
path
Talvez não saibas por onde se pode passar para o outro lado; não pela ponte , que está fechada para quem apenas leva a imaginação: mas por um caminho que junta quem olha, de ambos os lados, as nuvens de chuva que o mar empurra para terra.
É um caminho com as cores de um arco-íris. As suas pedras fazem doer a alma, mais do que os pés; e se um de nós pega numa dessas pedras para a meter no bolso, ela desfaz-se, como se fosse areia.
Encontramo-nos a meio da travessia, num lugar em que olhamos para os dois lados de onde cada um de nós partiu. E os dois lados são iguais, com as mesmas árvores e as mesmas casas. Mas falas-me de uma sensação de distância que, apesar de estarmos juntos, trazemos connosco.
Também os caules crescem sem nunca se encontrarem; e se o ventos os empurra, cada um segue uma direcção diversa. por isso, não nos vemos, neste fim de tarde, nem ouvimos o que temos para nos dizer.
Para quê, então, atravessar as pontes abstractas que nos levam uns em direcção aos outros? Que distâncias se podem evitar quando julgamos que os seres coincidem no instante de um olhar?
Nuno Júdice
é dum corpo que falo.
Nunca tive outra pátria,
nem outro espelho,
nem outra casa.
É dum rio que falo,
desta margem onde soam ainda,
leves,
umas sandálias de oiro e de ternura.
Aqui moram as palavras;
as mais antigas,
as mais recentes:
mãe, árvore,
adro, amigo.
Aqui conheci o desejo
mais sombrio,
mais luminoso,
a boca
onde nasce o sol,
onde nasce a lua.
E sempre um corpo,
sempre um rio;
corpos ou ecos de colunas,
rios ou súbitas janelas
sobre dunas;
corpos:
dóceis, doirados montes de feno;
rios:
frágeis, frias flores de cristal.
E tudo era água,
água,
desejo só
dum pequeno charco de luz.
De luz?
Que sabemos nós
dessas nuvens altas,
dessas agulhas
nuas
onde o silêncio se esconde?
Desses olhos redondos,
agudos de verão,
e tão azuis
como se fossem beijos?
Um corpo amei,
um corpo, um rio,
um pequeno tigre de inocência,
com lágrimas
esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas,
arrefecidas
primaveras nas mãos.
Quem não amou
assim? Quem não amou?
Quem?
Quem não amou
está morto.
Piedade,
também eu sou mortal.
Piedade
por um lenço de linho
debruado de feroz melancolia,
por uma haste de espinheiro
atirada contra o muro,
por uma voz que tropeça
e não alcança os ramos.
Dum corpo falei:
que rompam as águas.
Eugénio de Andrade
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra
não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz
dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!
carlos edmundo de ory
O que é certo é que gostei de ti.
O resto não: se exististe, e se assim foi,
qual a cor dos olhos, ora verdes
ora cinzentos, deles levantou-se uma vez
um bando de andorinhas. Quais. As rápidas,
as que não andam, as que se amam no ar.
Como foi. Ficaste doente ou coisa assim,
levaram-te, muito se passou,
acho que ia ter outro filho e esqueci-me de ti
até ouvir-te, esta noite, a horas impossíveis,
- vem comigo, é tempo. Larga tudo e sai,
espero por ti ao pé da cancela.
Mas cheguei lá e o trinco
estava solto, batia ao vento
contra o poste, fechei-o, voltei para trás,
a pensar em ti, que estiveste lá,
sabe-o Deus, que abriste a cancela,
que gostei de ti e também
que a porta não encaixava bem.
Eva Gerlach
Acordar
Após um violento ataque de tosse, baba e ranho, arquejante ainda, dispara as primeiras palavras que já tardavam nesta história, «Foda-se pró caralho!». Procura os óculos e coloca-os nervosamente na cara, olha em volta e vê Elisabete na porta, dinossauro ao lado, que a fixa curiosa, olha para o alto e vê a trave do tecto quebrada a meio e fica ali parada, no que parece uma reflexão. Olha uma vez mais a trave e exclama «Puta que pariu!».
dos dias
uma pedra, um fio de erva, um milagre
preciso que me digas agora
uma coisa inocente
Não uses palavras
qualquer palavra que me digas há-de doer
pelo menos mil anos
não te prepares, não desejes os detalhes
preciso que docemente o vento
e longínquo e o próximo
espalhe o amor que não teme
se me segredas
aquilo que no fundo das nossas mentiras
se tornou uma verdade sublime.
José Tolentino Mendonça
até estares longe do meu medo
Alejandra Pizarnik
Clarice Lispector
da ausência
De veres o meu lugar.
De me veres só apagando a luz do quarto
cada noite no escuro a respirar como um clarão.
De me veres do lado exterior.
Muro, fenda no muro e sem força para esperar.
De te hospedares em mim.
De descobrires a posição da árvore fixa no crescimento
da árvore que agora sou circulando com dificuldade
do fruto cortado para ocupar as mãos.
De o veres empunhado como arma para afastar o medo.
De veres a casa.
De estares à minha beira e no quarto ao lado
vazio, no vazio búzio
de ocupares o vazio para o libertar.
De veres a pedra branca dos meus olhos
seixo dos rins
pedra polida de tanto rebentar
primavera de si mesma.
De anunciares em silêncio
o nada que salva a minha mão perdida
remo à superfície teimando contra
o peso da âncora de fechar os olhos
e inclinar o corpo afogado.
De perdoares.
Por ter-me apagado tão longe de te ser luz
de te ser lâmpada horas e horas
à noite e no Inverno.
(...)
De estar sentado e inútil - como se tudo à minha volta me cegasse -
Apodrecendo a cadeira um odor da terra - como a tempestade -
Cansado, cansado.
Sem força para ver a tua face.
Daniel Faria
com especial agradecimento ao meu publisher...
Eu vi herberto uma actriz a incendiar palavras num palco
quarto de hotel
as palavras dadas e as outras caladas num lugar saturado de
vapor de água
e aquelas gravadas na calçada perdidas a tentar perceber como
se escreve
um nome gritando um nome para a voz encurralada abandonar
a cabeça
eu vi a cerzidura de cada palavra a resistir à dor à tristeza
ao cansaço
de outras palavras arrancadas da sua pele na passagem
dos dias
palavras que se contaminam e se perdem sem ela saber já
de quem são
os rostos de mortos e vivos atropelados num
caderno imaginário
eu vi um corpo curvado subitamente brilhar num
campo de madressilvas
lá longe onde os amantes caminham sem rumo atrás
de sombras amarelas
onde os amantes se perdem em dobras de esquinas e espelhos
e olhares
os corpos traídos pela inesperada declinação da luz nos
seus ombros
eu vi uns cabelos negros tornearem uma lágrima que escurece
o dia
escurece a claridade de um gesto que vem de longe e
se imobiliza
talvez uma borboleta negra como as que de dia nos dizem
da noite
e nos fazem estancar o sangue que corre nas veias ávido
de água e luz
eu vi resistir um corpo branco amarelecido por uma luz que
não há
rodar na direcção da toscânia à procura da noite que nunca
tem fim
porque há uma noite eterna para os que acreditam na noite
sem fim
nos fios invisíveis que tecem palavras e pétalas de rosa
e desejos
eu vi umas mãos delicadas a tomarem em cuidados uma menina
perdida
a da memória emprestada daquele em quem as palavras são
salvação
perdidos eu tu e ela em enredadas palavras demasiado frágeis
para a verdade
num tempo em que já não florescem infinitos embrulhados em
laços azuis
eu vi o horizonte recortado pela deusa magoada pelo amor que
já não há
ou nunca houve
e o silêncio a encher o quarto e a coarctar o sangue
nas veias
subitamente substituido por um liquido verde que renova
mitos e mundos
caminhos ladeados por anjos esquálidos e deuses de
olhos vazados
eu vi a alegria quando se pensa que a tristeza são uns olhos
castanhos
marejados de lágrimas ou apenas a aflorarem o lado mais difícil de
dizer
do amor que já não virá das ilhas rodeadas por mar e por ilhas de
ilhas
olhos castanhos a desafiarem deuses e os vazios oceânicos das
distâncias
eu vi os teus olhos surpresos surpreenderem um homem sentado no
sonho
das palavras que se misturam umas com as outras como contas
coloridas
com imagens intermináveis semeadas de sonhos com plantas
carnívoras
sonhos que invadem as noites e nos empurram para o sol que nos
cega
eu vi nos teus olhos a ternura que submete os corações de touros
selvagens
a frescura e a luz que inundam as terras devastadas e estéreis dos
desamores
e resgatam da sombra das águas extenuadas as algas e os líquenes
precisos
à renovação das palavras deslumbradas esmagadas por securas e
tédios
eu vi a tua água límpida inundar os caminhos secos das nossas
memórias
a seiva que limpa as veredas escuras do nosso sangue em vão
derramado
o mel que suaviza as nossas gargantas secas e exaustas pelo
inenarrável
o sangue rejuvenescido que expulsa das nossas veias o lixo do
passado
eu vi a tua boca proferir fórmulas mágicas
"Obedece-me, meu coração. Eu sou o teu senhor.
Enquanto estiveres no meu corpo não me serás hostil:"
e eu sentado no chão a mimar o canto mágico furtado ao livro dos
mortos
com a esperança de acender na noite palavras e corpos e
olhares novos
eu vi os teus olhos cravados no chão à procura de sinais
cifrados
de enigmas que iluminem um pensamento novo ainda que
breve
uma luz que obscuramente possa desvendar as trevas do
mundo
e eu atarefado a desenhar no ar criptogramas para te
oferecer
eu vi aproximares-te de mim arrastando uma longa cauda de
fogo frio
e as tuas mãos a trespassarem sem dor o meu corpo desabitado e
dócil
os meus pensamentos desenhados pela mão esquerda de uma
criança
a minha alma que teimosamente busca ainda na lama as pérolas puras
eu vi e não vi tudo o que vi ou imaginei ou não imaginei e vi-te e
não te vi
sonhei-te talvez só no meu sonho vagabundo de inventar seres e
sonhos
fechado no quarto de hotel palco onde tu és verdade isso é
mesmo verdade
tu em estado de graça a incendiar palavras que estalam como
sal queimado
eu vi uma actriz a incendiar palavras
em estado geral de graça
a ser feliz
eu vi.
Carlos Alberto Machado
just don't put down your guns yet
quando nos põem numa vida não sabemos ter outra
Dulce Maria Cardoso
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta entra-se em muitos sítios
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo
mas não no mundo
nem numa mulher
nem na alma
quer dizer
nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim
como hoje
que chove muito
e me custa escrever a palavra amor
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e só a alma sabe onde as duas se encontram
e quando
e como
mas que pode a alma explicar?
por isso o meu vizinho tem tempestades na boca
palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que ele amou
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá
como o silêncio que existe entre duas rosas
ou como eu
que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que vê a chuva
e à chuva
ao meu coração desterrado
Pergunto onde fica,
em que lugar se oculta a ferida secreta
para onde foge todo o homem
à procura de refúgio
se lhe tocam no orgulho, se lho ferem?
Esta ferida
— que fica assim transformada em foro íntimo —
é que ele vai dilatar, vai preencher.
Sabe encontrá-la, todo o homem,
ao ponto de ele próprio ser a ferida,
uma espécie de secreto
e doloroso coração.
Se observarmos o homem ou a mulher
que passam com olhar rápido e voraz
— e também o cão, o pássaro, uma panela —
a velocidade do olhar é que nos mostra,
ela própria e com rigor máximo,
que ambos são a ferida
onde se escondem mal sentem o perigo.
O quê?
Já lá estão, já os conquistou
— deu-lhes a sua forma —
e para ela a solidão:
lá estão inteiros no retesar de ombros
em que passam a concentrar-se,
com toda a vida a confluir na ruga maldosa da boca,
e contra a qual nada podem nem querem,
pois dela é que sabem esta solidão absoluta,
incomunicável — este castelo da alma —
para serem a própria solidão.
jean genet
Show me, show me, show me
How you do that trick
"The one that makes me scream," she said
"The one that makes me laugh," she said
And threw her arms around my neck
Show me how you do it
do desejo...
é tão difícil sentar-se sozinho. sentar-se ali sozinho. a estrada a encher-lhe o olhar. estendida como uma vida sobre outras vidas. rompendo tempos. abrindo o passado, abrindo o futuro. a estrada nua de um lado, nua do outro. indecisa e implacável. implorando para ser atravessada. parecendo que implora. como se o presente pudesse existir neste lado e naquele lado e não se soubesse que lado escolher. e ele ali sentado. aparentemente sozinho.(...)
e ele sabe que nunca se poderá sentar ali sozinho. em nenhum lugar, em nenhuma dimensão se poderá sentar sozinho. porque no perímetro de quem respira… porque o leito por onde corre a respiração de alguém, é que é o chão mais profundo de um ser. é o lugar indizível do seu próprio divino. um espaço que só a água do sonho consegue ocupar. fundo, muito fundo, tão fundo como a eternidade. e é aí que evoluem todos os seres do seu ser, desamarrados do tempo, soltos, demorados como demora o rasto do último beijo no coração de quem ainda perde o que um dia a estrada levou.
Gil T.Sousa
la tristesse dans la lumière du matin
diferentes e parecidas
com cada uma é diferente e parecido
com cada uma a ausência de amor é diferente
com cada uma a ausência de amor é parecida
Samuel Beckett
dentro da pele não viaja ninguém;
fora da pele ninguém nos vê passar.
Jesús Jiménez Domínguez
José Miguel Silva