PowerPoint





Powerpoint  www.deictico.org



A sala tinha as mesas dispostas em “U” e, na penumbra, alguns dormitavam enquanto outros tentavam, a todo o custo, permanecer de olhos abertos. Haveria um ou outro que, interessados, tomavam apontamentos mas o sentimento generalizado era o de que o coffee break tardava e que a sucessão de slides PowerPoint se tornava, por cada um que aparecia na tela, um fardo cada vez mais insuportável.
De quando em quando, o ruído aparecia: ou alguém respondia a uma chamada supostamente urgente, falando em surdina com a mão tapando a boca em forma de concha, ou eram os rebuçados que iam desaparecendo das taças dispostas estrategicamente a cada dois lugares.
XIS continuava a sua apresentação como se o mundo lhe fosse externo. Gráfico após gráfico, iam surgindo os números, ora do sucesso, ora da desgraça. E todos eles eram ditados por XIS de uma forma monocórdica, seguindo-os um a um, sem deixar escapar fosse qual fosse, não fosse o mundo acabar ali mesmo, de repente, esquecida ficasse uma percentagem de subida das vendas ou de retracção do mercado.
“Conforme podem verificar”, dizia com a voz nasalada, “temos aqui um crescimento de doze por cento de 2004 para 2005”, e o vento lá fora insistia numa constante perseguição das folhas que rodopiavam, “e, como podem ver, de 2005 para 2006 continua o crescimento, desta vez de apenas três por cento”… a sala iniciava a sua transformação, esbatendo-se. A assistência fundia-se já numa consistência caramelizada e ficava grudada às mesas e cadeiras. Não conseguiam mover mais nada a não ser os olhos que fitavam mais um slide, desta feita com os valores em euros. “De 2006 para 2007”, nasalada a voz, dizia “treuze por cento” e a cerveja fresca que a rapariga da FHM cuja capa tinha visto na área de serviço me tinha trazido escorregava já pela goela ressequida pela percentagem. O sol punha-se num daqueles momentos gloriosos [“quinze por cento”] e apenas a visão de três Reis Magos lá ao fundo, à beira de água me fez estranhar algo na paisagem [“de 2004 para 2005”]. Já tinha deixado de ligar aos Homens-Caramelo que jaziam debaixo de gráficos de barras [“uma subida de quatro por cento”] e juro que não reparei qual a altura exacta em que XIS se transformou num peixe-balão e saiu voando muito lentamente, inchado por completo e abanando a barbatana, lentamente pelo ar fora, janela fora, campos fora até ao pôr-do-sol, arrotando aqui e ali uns dez por cento entre 2006 e 2007.
A vertigem estava acabada e ele olhava uma vez mais a assistência com o costumeiro olhar bovino de vaca do Menino Jesus, rosto de serafim autista apanhado em plena masturbação. A assistência olhava em silêncio, tentando determinar se o peixe-balão voltaria ao pódio com mais uma série de slides com gráficos, percentagens, valores em unidades de venda e em euros, tudo muito bem alinhadinho, tudo muito monocromático, tudo muito monocórdico, tudo muito morfinizado. A vaca peixe-balão serafim autista deitou um último olhar de menino culpado à audiência e despediu-se.
O coffee break veio mesmo a calhar.

0 comentários: