A cor do natal é um amarelado de fotografia gasta pela memória de risos. Cada natal que passa parece ter acontecido há séculos e, no preciso momento em que existe, sinto o paradoxo de ser já um tempo passado como se correndo à velocidade da luz tivesse, num segundo, dado a volta aos universos para constatar que o tempo presente não é mais que uma ilusão, um fogo fátuo.
A ilusão do natal é precisamente essa, a de que o tempo resta imutável, como as pessoas. E, no entanto, tudo muda de ano para ano. Inexoravelmente. Por vezes imperceptivelmente, tudo muda, embora a maioria das vezes sem algo de verdadeiramente novo que se possa registar.
A única coisa que faz de um natal algo de verdadeiramente novo é, suprema coerência, um nascimento, uma alma fresca a juntar-se à fotografia. São os risos da canalha que dão outro colorido ao natal e, sem eles, a época não é mais que um reavivar de fogueiras que vão perdendo o calor no decurso do restante ano. A canalha nascida e pertencente agora ao presépio em que todos nos transformamos faz de nós o quadro a que nos habituamos; e assim nos deixamos ficar, embevecidos pelos risos e diabruras, deixados que somos ao sabor de outras recordações, talvez a dos nossos próprios risos que a memória, cruel, cedo nos roubou.
Tudo o resto é festa, uma simples e interminável festa.
Haverão muitos que recordem natais passados. Eu não me recordo de muitos. Recordo apenas aqueles em que o meu filho foi criança, tenho a sorte de ter tido esse prazer, o de ter tido uma criança-natal durante alguns anos, os suficientes para poder, junto com ele, rir e desembaraçar as prendas dos desnecessários embrulhos.
Não creio que o meu filho recorde esses natais. Serei, junto com todos os que com ele riram nessas noites, nada mais que uma ténue impressão, indistinta num limbo cerebral qualquer que faz, que fará do natal uma época que parece inscrita na nossa herança genética semelhante a todas as outras e que, sem significado aparente, nos fazemos cumprir – uma espécie de regra, a distinção que faz de nós o que somos, o indivíduo em si, a memória. Porque nada mais somos do que a nossa memória.
E é essa memória que faz de nós o que somos a mesma que nos atraiçoa. Porque somente ao fim de muitos e muitos anos somos capazes de compreender, de interligar todos os pequenos fragmentos, todos os estilhaços que a compõem e, finalmente, dar-lhe algum sentido, ainda que aparente, que nos permita fazer uma espécie de fio condutor explicativo das coisas. De todas aquelas pequenas coisas que não aparecem na fotografia amarelecida pelo tempo ou que, aparecendo, estão lá em contornos indefinidos, manchas de tempo, fantasmas que nos sussurram algo que não conseguimos entender no meio da cacofonia estridente que é a vida. Tenho a secreta esperança que o meu filho, outrora criança-natal, possa um dia vir a conseguir acabar o puzzle de fotografias, talvez dar-lhes cor. Porque todos temos algo a justificar.
O natal dura enquanto duram os velhos. Uma vez partidos, o natal cessa a sua forma de tantos anos, reparte-se em novos espaços, fragmenta-se em novos presépios, tantos quantos os que outrora ofereceram meninos-natal a esses velhos.
São os velhos os guardiães do natal, são eles quem insiste na presença física dos que lá aparecem e, mais que isso, na presença de todos, mesmo todos. Dos filhos e netos especialmente, mas também dos que partiram, de todos os ausentes. É possível, se observarmos com atenção, notar que por vezes eles não estão a falar somente com quem está à mesa. É possível notar-lhes nos olhos as ocasiões em que se viram para dentro, em conversas secretas com outros que, não estando ali, lhes são presentes, cada vez mais. Porque são esses quem lhes faz companhia durante o resto do ano.
E o natal é, para eles, o dia de casa cheia de vida, dia em que são lembrados.
Lambuzam-se de histórias de sucesso contadas pelos filhos, aquecem-se com os projectos irrealistas dos netos, vivem, enfim, um dia, aquele dia em que as famílias o são ou tentam sê-lo. E sabem, no íntimo, que aquele pode sempre ser o último, sabem que a sê-lo, que este o deve ser em condições: em paz, em alegria, em família, em suma, uma boa memória. Porque nós somos a nossa memória, mais vale sermos uma memória feliz.
Um dia o natal há-de cessar na minha vida. Creio que isso seja inevitável.
Sendo como sou, não creio que vá dar demasiada importância ao facto. Sou do género de pessoa que aprendeu a fazer-se sozinha, cedo na vida, e tenho aquele tipo de orgulho mesquinho que me afasta destas coisas e que, consequentemente, acaba por me afastar da memória das pessoas.
A falta de natal na minha vida será da minha inteira responsabilidade e será com esse tipo de orgulho – o tal – que enfrentarei as fotografias amarelecidas da minha vida, com cada vez mais fantasmas e cada vez menos corpos presentes. Não serei, espero, do tipo que começa a ler o jornal pelas páginas de necrologia em busca de amigos de escola. Sei que a vida não será pródiga em dias de companhia que não seja a da minha querida mulher, a única pessoa que, apesar de tudo, lá vai aturando este feitio filho da puta. Se o conseguir aturar muitos mais anos.
Mas estou convencido que hão-de haver dias em que desejarei um natal, seja ele em Dezembro ou em Julho, tanto faz. Dias em que a memória me pregará partidas e me confrontará com aquilo que realmente sou: um fotograma recorrente na memória aleatória dos dias, destes dias que se vão apagando sem eu me dar conta.
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