Manhã Cedo

Manhã Cedo  original de CJT para www.deictico.org


Olhou-se ao espelho após o banho. Seria, indubitavelmente, com aquela mesma cara que iria, uma vez mais, enfrentar o dia. Nos últimos tempos a sua vida tinha-se tornado um género de lento e agonizante processo de desintoxicação. Um dia de cada vez, sendo cada um deles mais uma vitória conquistada sobre a urgência. Um gerúndio interminavel. Resolveu-se e, saindo da casa de banho que deixava o vapor perfumado do banho humedecer a tela exposta na parede frente à porta, dirigiu-se ao guarda-fatos. Iria de fato. Escolheu aquele que lhe pareceu mais sóbrio, mais profissional - afinal, ele tinha aqueles bons fatos que lhe davam, diria, uma determinada distinção, aquele tipo de presença "jovem quadro dinâmico" tão apreciada pelas outras pessoas. "Sr. Doutor", diriam até. Teria, como costume, o cuidado de apertar os atacadores ainda sem ter vestido a camisa pois, caso contrário, amarrotá-la-ia. Fez o nó de gravata do costume - o que tinha aprendido com quinze anos ainda - e acertou-lhe a ponta pelo meio da fivela. Coisa sóbria. Não gostava mesmo nada daqueles nós que parecem estar a segurar a cabeça pelo queixo tão ao gosto das cabeças cheias de gel e penteados de yuppie tardio. Gostava de si sóbrio. Vestiu o casaco certificando-se da presença da carteira e olhou-se ao espelho dando um jeito ao cabelo rebelde. Aproximou-se para verificar se estava bem escanhoado e detectou aqui e ali um ou outro ponto negro. Não seria por isso. Muito pior eram os dentes amarelecidos por anos de nicotina, esses sim, a fazerem-se notar tanto quanto um semáforo amarelo nos diz "tem cuidado, abranda!". Apertou o botão e saíu de casa para a rua, fato escuro, sapatos pretos, cabelo escuro, o porte seguro que os seus 38 anos de idade lhe conferiam, tudo parecia combinar naquela manhã fresca de início de Inverno.

Não iria de carro, a sua mulher tinha-o levado para o trabalho. Iria de autocarro, ou melhor: iria a pé. Não era longe e a caminhada seria revigorante, dando-lhe tempo para pensar nas atitudes a tomar, para planear a sua actuação ao mínimo detalhe. Não gostava de deixar estas coisas correrem ao acaso e tinha por hábito ensaiar as coisas pelo caminho, murmurando aqui e ali conversas imaginadas, sorrisos até que lhe afloravam o rosto pondo as pessoas que por ele passavam a pensar no que se passaria na cabeça de um homem para, logo de manhã cedo, ter motivos para sorrir, coisa não muito normal, decerto. Chegado à Avenida estava já perto, talvez aí a uns quinhentos metros do destino. Havia ali um café pelo que, ainda em jejum, resolveu entrar para tomar um café e ler as primeiras páginas dos jornais expostos na tabacaria. Na entrada, resolveu avaliar as impressões que causaria. Entrou desenvolto, olhando em frente e tentando abranger a "audiência" com a sua visão periférica, chegando ao balcão com um sonoro "Bom dia!, um café, por favor." Alguns voltaram-se para ver quem chegava, tinha divisado algumas pessoas que o seguiam com o olhar. Certificou-se de ter tudo no devido lugar e em condições e sentiu-se satisfeito consigo próprio. Conseguira chamar a atenção das pessoas, com tempo, se o tivesse e se necessário fosse, conseguiria também ter-lhes causado boa impressão. Pagou o café e saiu.

Chegara enfim à recepção. Ainda cá fora, olhou para o interior pelas portas de vidro, divisando a fila que curvava no seu interior. Logo ali, do lado de dentro, um porteiro fardado exercia um sonambulismo sem dúvida ensaiado a todas as horas do dia, distribuindo aqui e ali formulários para preenchimento e dando indicações acerca dos guichets mais apropriados para o assunto. Fazia-o com uma espécie de resignação para com a vida confinada a quatro metros quadrados de área sem grades de uma prisão quase perpétua: não olhava para ninguém, para nada, mantendo os olhos vagos serenamente postos nos papeis que distribuia mecanicamente e aos quais juntava uma voz monocórdica que lhe emprestava uma atitude de robot complacente. Entrou e disparou-lhe um dos melhores "Bom dia!" que alguma vez tinha conseguido. O homem, pela primeira vez, levantou o olhar e balbuciou um bom dia, sem dúvida não compreendendo o motivo para tal saudação. Ele não estava ali, definitivamente, para isso. Sorriu e tentou um "faxavor" simpático, levantando-se da cadeira. "Poderia informar-me onde obter informações acerca da possibilidade de uma entrevista para emprego?", perguntou ao porteiro. O porteiro, de repente, ficou pensativo. O sorriso tinha-lhe desaparecido da face. "Mas o senhor está aqui para quê, afinal? Tem alguma marcação com a Senhora Doutora?", sentou-se olhando uma vez mais os papeis. "Não", respondeu-lhe. "Enfim... gostaria de falar com ela, se fosse possível, uma vez que será ela, concerteza, que irá informar-me dos proce..." foi interrompido abruptamente. "Mas você está aqui para o 'desemprego' ou não?" O "Senhor" tinha já desaparecido de cena. "Desculpe-me, não me fiz entender. A minha ideia é precisamente evitar o desemprego. O que eu quero é arranjar trabalho!", explicou-lhe deixando escapar uma ponta de nervosismo que corrigiu prontamente com um sorriso. O outro olhou-o uma vez mais e, calmamente, tirou três formulários da secretária, explicando "Este, você preenche-o e entrega ali no guichet três; este, é para entregar depois, quando for chamado. Não o preencha, eles é que fazem isso. E este é para levar para casa e trazer quando for chamado". Objectou. Não estava ali para isso. Apenas queria saber como proceder melhor para tentar recomeçar a trabalhar o mais rapidamente possível. Quer dizer... ele nem sequer queria um subsídio. O porteiro fez um gesto de impaciência com a mão, para que ele circulasse ou tomasse a sua posição na longa fila. Dirigiu-se para lá, para o fim da fila. O ruído das pessoas, naquela límpida manhã de início de inverno, começava a tornar-se insuportável.

[continua]

0 comentários: