Mais uma meia-noite de todas as decisões. O espaço para lá da meia-noite é uma nebulosa de imagens de sucessos arrepiantes em que todos os planos futuros dão certo. E é desta que se deixa de fumar, que passamos a ir ao ginásio, que vamos estar mais tempo em casa e menos no gabinete. Será desta que conseguiremos ter um projecto aprovado e que a Administração, finalmente, reconhecerá o nosso trabalho. É o espaço para todas as promessas e desejos que, como agora, hão-de ser cumpridos uns, verão o insucesso outros, serão ainda simplesmente esquecidos a maioria deles.
Falar em mais um ano que chega é simplesmente falar no que está já devidamente agendado, em moleskines intermináveis, agendas de e-mail, lembretes no telemóvel. Mais tempos sobre tempos, na inexorável sucessão que nos leva à desconfortável velhice.
O espaço para lá da meia-noite é uma excrescência da nossa frustração.
Mas este ano que chega é como que um acumular de tensões, algo que nos reserva um não-sei-quê de escuro, de temor. É um ano de proibições, um ano de censura, um ano de simulacros de liberdade espartilhada pela taxa de juro e por um conceito de Europa. É um ano em que se sancionam jogos de Paz em terras de ódio, é um ano em que se negoceia abertamente com ditadores, é um ano em que a Guerra, omnipresente, dará os seus frutos em economias amigas. É um ano em que alguns portarão estrelas de David ao peito e em que outros poderão telefonar, escrever, apontar o próximo com a devida sanção e incentivo dos estados. Um ano em que os deuses ficarão mais próximos do Homem, com tudo o que de funesto isso pode trazer: a pobreza, a ignorância, a falsa noção de família, o pecado, a guerra.
É um ano em que ser blogger talvez venha a ter a sua importância.
Este ano que chega é, inevitavelmente, a continuação do que acaba. Porque o calendário é apenas uma invenção do Homem que gosta de se cercar a ele próprio de convenções que o localizem, que lhe atribuam um espaço, um agora, uma verdade, um eu. O calendário é, por assim dizer, a invenção última do Homem para justificar a sua presença, para dizer “Nós conhecemos o tempo, sabemos o que fazer com ele”. Nada mais falso.
E irão nascer uns e morrer outros, para suprema alegria do mundo assim rejuvenescido. E irão existir sucessos contados com alegria, assim como falhanços e desistências. Irão, como sempre, existir amores e ódios, alegrias e tristezas. E o mundo há-de continuar a girar, e nós com ele, como burros aparelhados à nora que, em silêncio cumprem a sua função, debatendo-se, em teimosia, mas sempre amarrados à canga, ao jugo, neste movimento circular que é, afinal, o nosso ser.
O que fazer?, devia ser, mais que decisões tomadas em refugo da ardência sobrealimentada a cálices de vinho do Porto e espumante, a pergunta de fim de ano. O que fazer? O que posso eu fazer em relação ao mundo? O que devo eu ser para o mundo? Que lhe devo eu dar? A pergunta é, já assim, incómoda. Sê-lo-á ainda mais se a fizermos mesmo. Porque a vida não dá muito espaço à filosofia, arte vã para os que trabalham para comprar comida. O que fazer?, dirão os mais dotados de liberdade, daqueles segundos de liberdade que entre uma volta e outra na nora conseguem ter no breve momento em que fecham os olhos. Mas logo a vara lhes assenta, a vara dos que, atrás amarrados mas pensando-se fora da nora, vai empurrando os que, à sua frente, sentem a história que, externa à vida real, lhes é inscrita.
É mais um ano, o que se aproxima e, daqui de onde eu vejo as coisas, não existem muitos motivos para festejar. Irá valer-me o facto de, durante uma horas, poder ver faces felizes e esperançosas, olhar nos olhos das pessoas e ler-lhes memórias, esperanças e decisões. Irá valer-me o facto de existir ainda, em cada um de nós, aquela centelha que nos faz saber aproveitar a ocasião. Porque nós somos assim, artífices do tempo presente, que vamos construindo, embora sem disso darmos conta. O futuro é o tempo construído agora, não com pensamentos ou planos, mas sim nas mais simples coisas que façamos neste momento.
Feliz 2008 para todos.
3 comentários:
É somente o tempo que passa...
Abraço
Olá Joaquim,
Agradeço-te a tua visita, e aproveito para te convidar a aparecer no meu cantinho virtual mais vezes!
Cumps
"É um ano em que ser blogger talvez venha a ter a sua importância."... e eu pergunto: para quê?
Enviar um comentário