oposto antónimo bipolar
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oposto antónimo bipolar
autópsia de Carlos José Teixeira
this day
Há dias em que acordamos e percebemos tudo
o recorte das cidades no horizonte
a distância que há nos caminhos que rasgam os corações
como se fossem searas de trigo
o nome de certas coisas que só sentimos num abraço
depois percorremos a mão pelo granito
como se fossemos o tempo
e como se a vida não fosse mais do que uma claridade
que invade pela frincha da porta o quarto escuro
é então que descobrimos
num desses rostos com que cruzamos o olhar
que a vida podia ser outra
e que seríamos felizes num outro sorriso
se lhe entregássemos inteiros os nossos lábios
há dias assim
em que acordamos e percebemos tudo
como se tudo nos estivesse imensamente próximo
como se cada dia nascesse e morresse num abraço
como se a vida coubesse num poema
José Rui Teixeira
autópsia de Mia
Aos Autores
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autópsia de Grande Tanatologista
autópsia de Mia
2008
Mais uma meia-noite de todas as decisões. O espaço para lá da meia-noite é uma nebulosa de imagens de sucessos arrepiantes em que todos os planos futuros dão certo. E é desta que se deixa de fumar, que passamos a ir ao ginásio, que vamos estar mais tempo em casa e menos no gabinete. Será desta que conseguiremos ter um projecto aprovado e que a Administração, finalmente, reconhecerá o nosso trabalho. É o espaço para todas as promessas e desejos que, como agora, hão-de ser cumpridos uns, verão o insucesso outros, serão ainda simplesmente esquecidos a maioria deles.
Falar em mais um ano que chega é simplesmente falar no que está já devidamente agendado, em moleskines intermináveis, agendas de e-mail, lembretes no telemóvel. Mais tempos sobre tempos, na inexorável sucessão que nos leva à desconfortável velhice.
O espaço para lá da meia-noite é uma excrescência da nossa frustração.
Mas este ano que chega é como que um acumular de tensões, algo que nos reserva um não-sei-quê de escuro, de temor. É um ano de proibições, um ano de censura, um ano de simulacros de liberdade espartilhada pela taxa de juro e por um conceito de Europa. É um ano em que se sancionam jogos de Paz em terras de ódio, é um ano em que se negoceia abertamente com ditadores, é um ano em que a Guerra, omnipresente, dará os seus frutos em economias amigas. É um ano em que alguns portarão estrelas de David ao peito e em que outros poderão telefonar, escrever, apontar o próximo com a devida sanção e incentivo dos estados. Um ano em que os deuses ficarão mais próximos do Homem, com tudo o que de funesto isso pode trazer: a pobreza, a ignorância, a falsa noção de família, o pecado, a guerra.
É um ano em que ser blogger talvez venha a ter a sua importância.
Este ano que chega é, inevitavelmente, a continuação do que acaba. Porque o calendário é apenas uma invenção do Homem que gosta de se cercar a ele próprio de convenções que o localizem, que lhe atribuam um espaço, um agora, uma verdade, um eu. O calendário é, por assim dizer, a invenção última do Homem para justificar a sua presença, para dizer “Nós conhecemos o tempo, sabemos o que fazer com ele”. Nada mais falso.
E irão nascer uns e morrer outros, para suprema alegria do mundo assim rejuvenescido. E irão existir sucessos contados com alegria, assim como falhanços e desistências. Irão, como sempre, existir amores e ódios, alegrias e tristezas. E o mundo há-de continuar a girar, e nós com ele, como burros aparelhados à nora que, em silêncio cumprem a sua função, debatendo-se, em teimosia, mas sempre amarrados à canga, ao jugo, neste movimento circular que é, afinal, o nosso ser.
O que fazer?, devia ser, mais que decisões tomadas em refugo da ardência sobrealimentada a cálices de vinho do Porto e espumante, a pergunta de fim de ano. O que fazer? O que posso eu fazer em relação ao mundo? O que devo eu ser para o mundo? Que lhe devo eu dar? A pergunta é, já assim, incómoda. Sê-lo-á ainda mais se a fizermos mesmo. Porque a vida não dá muito espaço à filosofia, arte vã para os que trabalham para comprar comida. O que fazer?, dirão os mais dotados de liberdade, daqueles segundos de liberdade que entre uma volta e outra na nora conseguem ter no breve momento em que fecham os olhos. Mas logo a vara lhes assenta, a vara dos que, atrás amarrados mas pensando-se fora da nora, vai empurrando os que, à sua frente, sentem a história que, externa à vida real, lhes é inscrita.
É mais um ano, o que se aproxima e, daqui de onde eu vejo as coisas, não existem muitos motivos para festejar. Irá valer-me o facto de, durante uma horas, poder ver faces felizes e esperançosas, olhar nos olhos das pessoas e ler-lhes memórias, esperanças e decisões. Irá valer-me o facto de existir ainda, em cada um de nós, aquela centelha que nos faz saber aproveitar a ocasião. Porque nós somos assim, artífices do tempo presente, que vamos construindo, embora sem disso darmos conta. O futuro é o tempo construído agora, não com pensamentos ou planos, mas sim nas mais simples coisas que façamos neste momento.
Feliz 2008 para todos.
autópsia de Carlos José Teixeira
Natal
A cor do natal é um amarelado de fotografia gasta pela memória de risos. Cada natal que passa parece ter acontecido há séculos e, no preciso momento em que existe, sinto o paradoxo de ser já um tempo passado como se correndo à velocidade da luz tivesse, num segundo, dado a volta aos universos para constatar que o tempo presente não é mais que uma ilusão, um fogo fátuo.
A ilusão do natal é precisamente essa, a de que o tempo resta imutável, como as pessoas. E, no entanto, tudo muda de ano para ano. Inexoravelmente. Por vezes imperceptivelmente, tudo muda, embora a maioria das vezes sem algo de verdadeiramente novo que se possa registar.
A única coisa que faz de um natal algo de verdadeiramente novo é, suprema coerência, um nascimento, uma alma fresca a juntar-se à fotografia. São os risos da canalha que dão outro colorido ao natal e, sem eles, a época não é mais que um reavivar de fogueiras que vão perdendo o calor no decurso do restante ano. A canalha nascida e pertencente agora ao presépio em que todos nos transformamos faz de nós o quadro a que nos habituamos; e assim nos deixamos ficar, embevecidos pelos risos e diabruras, deixados que somos ao sabor de outras recordações, talvez a dos nossos próprios risos que a memória, cruel, cedo nos roubou.
Tudo o resto é festa, uma simples e interminável festa.
Haverão muitos que recordem natais passados. Eu não me recordo de muitos. Recordo apenas aqueles em que o meu filho foi criança, tenho a sorte de ter tido esse prazer, o de ter tido uma criança-natal durante alguns anos, os suficientes para poder, junto com ele, rir e desembaraçar as prendas dos desnecessários embrulhos.
Não creio que o meu filho recorde esses natais. Serei, junto com todos os que com ele riram nessas noites, nada mais que uma ténue impressão, indistinta num limbo cerebral qualquer que faz, que fará do natal uma época que parece inscrita na nossa herança genética semelhante a todas as outras e que, sem significado aparente, nos fazemos cumprir – uma espécie de regra, a distinção que faz de nós o que somos, o indivíduo em si, a memória. Porque nada mais somos do que a nossa memória.
E é essa memória que faz de nós o que somos a mesma que nos atraiçoa. Porque somente ao fim de muitos e muitos anos somos capazes de compreender, de interligar todos os pequenos fragmentos, todos os estilhaços que a compõem e, finalmente, dar-lhe algum sentido, ainda que aparente, que nos permita fazer uma espécie de fio condutor explicativo das coisas. De todas aquelas pequenas coisas que não aparecem na fotografia amarelecida pelo tempo ou que, aparecendo, estão lá em contornos indefinidos, manchas de tempo, fantasmas que nos sussurram algo que não conseguimos entender no meio da cacofonia estridente que é a vida. Tenho a secreta esperança que o meu filho, outrora criança-natal, possa um dia vir a conseguir acabar o puzzle de fotografias, talvez dar-lhes cor. Porque todos temos algo a justificar.
O natal dura enquanto duram os velhos. Uma vez partidos, o natal cessa a sua forma de tantos anos, reparte-se em novos espaços, fragmenta-se em novos presépios, tantos quantos os que outrora ofereceram meninos-natal a esses velhos.
São os velhos os guardiães do natal, são eles quem insiste na presença física dos que lá aparecem e, mais que isso, na presença de todos, mesmo todos. Dos filhos e netos especialmente, mas também dos que partiram, de todos os ausentes. É possível, se observarmos com atenção, notar que por vezes eles não estão a falar somente com quem está à mesa. É possível notar-lhes nos olhos as ocasiões em que se viram para dentro, em conversas secretas com outros que, não estando ali, lhes são presentes, cada vez mais. Porque são esses quem lhes faz companhia durante o resto do ano.
E o natal é, para eles, o dia de casa cheia de vida, dia em que são lembrados.
Lambuzam-se de histórias de sucesso contadas pelos filhos, aquecem-se com os projectos irrealistas dos netos, vivem, enfim, um dia, aquele dia em que as famílias o são ou tentam sê-lo. E sabem, no íntimo, que aquele pode sempre ser o último, sabem que a sê-lo, que este o deve ser em condições: em paz, em alegria, em família, em suma, uma boa memória. Porque nós somos a nossa memória, mais vale sermos uma memória feliz.
Um dia o natal há-de cessar na minha vida. Creio que isso seja inevitável.
Sendo como sou, não creio que vá dar demasiada importância ao facto. Sou do género de pessoa que aprendeu a fazer-se sozinha, cedo na vida, e tenho aquele tipo de orgulho mesquinho que me afasta destas coisas e que, consequentemente, acaba por me afastar da memória das pessoas.
A falta de natal na minha vida será da minha inteira responsabilidade e será com esse tipo de orgulho – o tal – que enfrentarei as fotografias amarelecidas da minha vida, com cada vez mais fantasmas e cada vez menos corpos presentes. Não serei, espero, do tipo que começa a ler o jornal pelas páginas de necrologia em busca de amigos de escola. Sei que a vida não será pródiga em dias de companhia que não seja a da minha querida mulher, a única pessoa que, apesar de tudo, lá vai aturando este feitio filho da puta. Se o conseguir aturar muitos mais anos.
Mas estou convencido que hão-de haver dias em que desejarei um natal, seja ele em Dezembro ou em Julho, tanto faz. Dias em que a memória me pregará partidas e me confrontará com aquilo que realmente sou: um fotograma recorrente na memória aleatória dos dias, destes dias que se vão apagando sem eu me dar conta.
autópsia de Carlos José Teixeira
Manhã Cedo
Olhou-se ao espelho após o banho. Seria, indubitavelmente, com aquela mesma cara que iria, uma vez mais, enfrentar o dia. Nos últimos tempos a sua vida tinha-se tornado um género de lento e agonizante processo de desintoxicação. Um dia de cada vez, sendo cada um deles mais uma vitória conquistada sobre a urgência. Um gerúndio interminavel. Resolveu-se e, saindo da casa de banho que deixava o vapor perfumado do banho humedecer a tela exposta na parede frente à porta, dirigiu-se ao guarda-fatos. Iria de fato. Escolheu aquele que lhe pareceu mais sóbrio, mais profissional - afinal, ele tinha aqueles bons fatos que lhe davam, diria, uma determinada distinção, aquele tipo de presença "jovem quadro dinâmico" tão apreciada pelas outras pessoas. "Sr. Doutor", diriam até. Teria, como costume, o cuidado de apertar os atacadores ainda sem ter vestido a camisa pois, caso contrário, amarrotá-la-ia. Fez o nó de gravata do costume - o que tinha aprendido com quinze anos ainda - e acertou-lhe a ponta pelo meio da fivela. Coisa sóbria. Não gostava mesmo nada daqueles nós que parecem estar a segurar a cabeça pelo queixo tão ao gosto das cabeças cheias de gel e penteados de yuppie tardio. Gostava de si sóbrio. Vestiu o casaco certificando-se da presença da carteira e olhou-se ao espelho dando um jeito ao cabelo rebelde. Aproximou-se para verificar se estava bem escanhoado e detectou aqui e ali um ou outro ponto negro. Não seria por isso. Muito pior eram os dentes amarelecidos por anos de nicotina, esses sim, a fazerem-se notar tanto quanto um semáforo amarelo nos diz "tem cuidado, abranda!". Apertou o botão e saíu de casa para a rua, fato escuro, sapatos pretos, cabelo escuro, o porte seguro que os seus 38 anos de idade lhe conferiam, tudo parecia combinar naquela manhã fresca de início de Inverno.
Não iria de carro, a sua mulher tinha-o levado para o trabalho. Iria de autocarro, ou melhor: iria a pé. Não era longe e a caminhada seria revigorante, dando-lhe tempo para pensar nas atitudes a tomar, para planear a sua actuação ao mínimo detalhe. Não gostava de deixar estas coisas correrem ao acaso e tinha por hábito ensaiar as coisas pelo caminho, murmurando aqui e ali conversas imaginadas, sorrisos até que lhe afloravam o rosto pondo as pessoas que por ele passavam a pensar no que se passaria na cabeça de um homem para, logo de manhã cedo, ter motivos para sorrir, coisa não muito normal, decerto. Chegado à Avenida estava já perto, talvez aí a uns quinhentos metros do destino. Havia ali um café pelo que, ainda em jejum, resolveu entrar para tomar um café e ler as primeiras páginas dos jornais expostos na tabacaria. Na entrada, resolveu avaliar as impressões que causaria. Entrou desenvolto, olhando em frente e tentando abranger a "audiência" com a sua visão periférica, chegando ao balcão com um sonoro "Bom dia!, um café, por favor." Alguns voltaram-se para ver quem chegava, tinha divisado algumas pessoas que o seguiam com o olhar. Certificou-se de ter tudo no devido lugar e em condições e sentiu-se satisfeito consigo próprio. Conseguira chamar a atenção das pessoas, com tempo, se o tivesse e se necessário fosse, conseguiria também ter-lhes causado boa impressão. Pagou o café e saiu.
Chegara enfim à recepção. Ainda cá fora, olhou para o interior pelas portas de vidro, divisando a fila que curvava no seu interior. Logo ali, do lado de dentro, um porteiro fardado exercia um sonambulismo sem dúvida ensaiado a todas as horas do dia, distribuindo aqui e ali formulários para preenchimento e dando indicações acerca dos guichets mais apropriados para o assunto. Fazia-o com uma espécie de resignação para com a vida confinada a quatro metros quadrados de área sem grades de uma prisão quase perpétua: não olhava para ninguém, para nada, mantendo os olhos vagos serenamente postos nos papeis que distribuia mecanicamente e aos quais juntava uma voz monocórdica que lhe emprestava uma atitude de robot complacente. Entrou e disparou-lhe um dos melhores "Bom dia!" que alguma vez tinha conseguido. O homem, pela primeira vez, levantou o olhar e balbuciou um bom dia, sem dúvida não compreendendo o motivo para tal saudação. Ele não estava ali, definitivamente, para isso. Sorriu e tentou um "faxavor" simpático, levantando-se da cadeira. "Poderia informar-me onde obter informações acerca da possibilidade de uma entrevista para emprego?", perguntou ao porteiro. O porteiro, de repente, ficou pensativo. O sorriso tinha-lhe desaparecido da face. "Mas o senhor está aqui para quê, afinal? Tem alguma marcação com a Senhora Doutora?", sentou-se olhando uma vez mais os papeis. "Não", respondeu-lhe. "Enfim... gostaria de falar com ela, se fosse possível, uma vez que será ela, concerteza, que irá informar-me dos proce..." foi interrompido abruptamente. "Mas você está aqui para o 'desemprego' ou não?" O "Senhor" tinha já desaparecido de cena. "Desculpe-me, não me fiz entender. A minha ideia é precisamente evitar o desemprego. O que eu quero é arranjar trabalho!", explicou-lhe deixando escapar uma ponta de nervosismo que corrigiu prontamente com um sorriso. O outro olhou-o uma vez mais e, calmamente, tirou três formulários da secretária, explicando "Este, você preenche-o e entrega ali no guichet três; este, é para entregar depois, quando for chamado. Não o preencha, eles é que fazem isso. E este é para levar para casa e trazer quando for chamado". Objectou. Não estava ali para isso. Apenas queria saber como proceder melhor para tentar recomeçar a trabalhar o mais rapidamente possível. Quer dizer... ele nem sequer queria um subsídio. O porteiro fez um gesto de impaciência com a mão, para que ele circulasse ou tomasse a sua posição na longa fila. Dirigiu-se para lá, para o fim da fila. O ruído das pessoas, naquela límpida manhã de início de inverno, começava a tornar-se insuportável.
[continua]
autópsia de Carlos José Teixeira
PowerPoint
A sala tinha as mesas dispostas em “U” e, na penumbra, alguns dormitavam enquanto outros tentavam, a todo o custo, permanecer de olhos abertos. Haveria um ou outro que, interessados, tomavam apontamentos mas o sentimento generalizado era o de que o coffee break tardava e que a sucessão de slides PowerPoint se tornava, por cada um que aparecia na tela, um fardo cada vez mais insuportável.
De quando em quando, o ruído aparecia: ou alguém respondia a uma chamada supostamente urgente, falando em surdina com a mão tapando a boca em forma de concha, ou eram os rebuçados que iam desaparecendo das taças dispostas estrategicamente a cada dois lugares.
XIS continuava a sua apresentação como se o mundo lhe fosse externo. Gráfico após gráfico, iam surgindo os números, ora do sucesso, ora da desgraça. E todos eles eram ditados por XIS de uma forma monocórdica, seguindo-os um a um, sem deixar escapar fosse qual fosse, não fosse o mundo acabar ali mesmo, de repente, esquecida ficasse uma percentagem de subida das vendas ou de retracção do mercado.
“Conforme podem verificar”, dizia com a voz nasalada, “temos aqui um crescimento de doze por cento de 2004 para 2005”, e o vento lá fora insistia numa constante perseguição das folhas que rodopiavam, “e, como podem ver, de 2005 para 2006 continua o crescimento, desta vez de apenas três por cento”… a sala iniciava a sua transformação, esbatendo-se. A assistência fundia-se já numa consistência caramelizada e ficava grudada às mesas e cadeiras. Não conseguiam mover mais nada a não ser os olhos que fitavam mais um slide, desta feita com os valores em euros. “De 2006 para 2007”, nasalada a voz, dizia “treuze por cento” e a cerveja fresca que a rapariga da FHM cuja capa tinha visto na área de serviço me tinha trazido escorregava já pela goela ressequida pela percentagem. O sol punha-se num daqueles momentos gloriosos [“quinze por cento”] e apenas a visão de três Reis Magos lá ao fundo, à beira de água me fez estranhar algo na paisagem [“de 2004 para 2005”]. Já tinha deixado de ligar aos Homens-Caramelo que jaziam debaixo de gráficos de barras [“uma subida de quatro por cento”] e juro que não reparei qual a altura exacta em que XIS se transformou num peixe-balão e saiu voando muito lentamente, inchado por completo e abanando a barbatana, lentamente pelo ar fora, janela fora, campos fora até ao pôr-do-sol, arrotando aqui e ali uns dez por cento entre 2006 e 2007.
A vertigem estava acabada e ele olhava uma vez mais a assistência com o costumeiro olhar bovino de vaca do Menino Jesus, rosto de serafim autista apanhado em plena masturbação. A assistência olhava em silêncio, tentando determinar se o peixe-balão voltaria ao pódio com mais uma série de slides com gráficos, percentagens, valores em unidades de venda e em euros, tudo muito bem alinhadinho, tudo muito monocromático, tudo muito monocórdico, tudo muito morfinizado. A vaca peixe-balão serafim autista deitou um último olhar de menino culpado à audiência e despediu-se.
O coffee break veio mesmo a calhar.
autópsia de Carlos José Teixeira
ALTAR
eis-me em oferta e no meu corpo te entrego todos os pedaços firmes da minha fé!
glória eterna ao teu luar sem mácula,
que rezarei sem cessar nos meus uivos cantados!
©2008 joaquim amândio santos e editorial negratinta
PHOTO created by AUGUSTO PEIXOTO
autópsia de Joaquim Amândio Santos
ONDULAÇÃO
quando o mar irrompe no arrogo farto que comanda as suas ondas deleitadas num furtivo afago do teu corpo, arranco célere seixos da areia e atiro-os sem hesitar. mergulho nele a minha raiva musculada, e reclamo minhas todas as conchas suas. e só então me deito a teu lado, numa praia nascida para ninho de encontro entre minha mão e a tua. assim nasce o nosso namoro carregado de conchas para nos sossegar!
autópsia de Joaquim Amândio Santos
autópsia de Mia