Pouco mais há a dizer. Caminho largando os últimos resíduos da memória. Fragmentos de noite escritos com o coração a pressentir as catástrofes do mundo. A grande solidão é um lugar branco povoado de mitos, de tristezas e de alegria. Mas estou quase sempre triste. Por exemplo, no fundo deste poço vi inclinar-se a sombra adolescente que fui. Água lunar, canaviais, luminosos escaravelhos. Este sol queimando a pele das plantas. Caminho pelos textos e reparo em tudo isto. O que começo deixo inacabado, como deixarei a vida, tenho a certeza, inacabada. O mundo pertenceu-me, a memória revela-me essa herança, esse bem. Hoje, apenas sinto o vento reacender feridas, nada possuo, nem sequer o sofrimento. Outra memória vai tomando forma, assusta-me. Ainda quase nada aconteceu e já envelheci tanto. Um jogo de estilhaços é tudo o que possuo, a memória que vem ainda não tem a dor dentro dela. As fotografias e os textos, teu rosto, poderiam projectar-me para um futuro mais feliz, ou contarem-me os desastres dos recomeçados regressos. Mas, quando mais tarde conseguir reparar que a vida vibrou em mim, um instante, terei a certeza de que nada daquilo me pertenceu. Nem mesmo a vida, nenhuma morte. Na mesma posição, reclinado sobre meu frágil corpo, recomeço a escrever. Estou de novo ocupado em esquecer-me. A escrita é precária morada para o vaguear do coração. Resta-me a perturbação de ter atravessado os dias, humildemente, sem queixumes. Anoitece ou amanhece, tanto faz.
Al Berto
3 comentários:
Pouco mais há a dizer...
Não podemos deixar de escrever o livro da vida, ainda que com paginas de tristeza e sofrimento devem ser escritas, lidas e relidas, para mudarmos a pagina e voltar a escrever novas folhas
querida mia. não conhecia este. tenho grandes lacunas na obra deste autor que tanto gosto. um beijinho para si. e obrigada *
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