não quero mentir mais. estou cansado de mentir.vejo o teu rosto parado numa fotografia e a memória
que guardo de ti é tão diferente da realidade assustadora das fotografias.
mas não vou mentir. estou cansado de mentir.
a minha vida também és tu, o teu rosto parado na minha memória.
a minha vida és tu e todas as mãos que me seguraram e me quiseram,
todos os lábios que me beijaram, todas as línguas que me desenharam figuras
na pele, todos os dentes que me morderam, todas as vozes que me disseram amo-te
e me fizeram acreditar nisso. não quero mentir mais. estou cansado de mentir.
não és quase nada, mas não quero e não vou fingir que nunca exististe.

José Luís Peixoto






Porque há tanto desperdício na pressa estúpida do fim. Amar também com a mão leve a linha da anca, o internamento ao vinco oculto, o flanco suave doce, o pescoço e a garganta, a mão toda, aberta na face, uma raiva fina lenta dos dedos nos cabelos. E depois convocar tudo ao mesmo tempo, procurar tudo em desespero para estar tudo presente na posse inteira do fim.

Vergílio Ferreira




a sul de nenhum norte






Pressinto que hei-de ficar a construir uma fuga sem significado,
que cada ano será menos fuga e mais o vício menor de a dizer.
Não há salvação. 
Na margem, ou à margem do nosso particular existir,
os que passam, e a quem não ligamos, fabricam o anonimato, o nosso.

Rui Nunes






A quem senão a ti direi
como estou triste? 
Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-de
juntar o que me está doendo ao vento
que não bate mais à tua porta? 

Eu sei que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. 
(...)
Morrer um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.

Não haver palavras és tu a desaparecer.


Bernardo Pinto de Almeida





repara bem no que não digo.

leminski







Que alguien te haga sentir cosas sin ponerte un dedo encima, eso es admirable.

Mario Benedetti





You started out as a curious traveler inside the turbulent blood-source of my body.
You inhabited the first vein. You moved on the main heart artery.
Then you became my very own blood.


Frida kahlo










Ninguém me dissera que os incêndios são homens
a arder no interior das suas memórias com as mãos
nas têmporas e demónios à volta da mesa. Ninguém
me falara da roseira que houve no jardim, já a morte
induzia a intempérie contra o meu corpo parado.
Ninguém me explicara que se sobrevive sem útero
na margem dos dias.

José Rui Teixeira


a sul de nenhum norte...






Trago nos olhos visões extraordinárias, de coisas que abracei de olhos fechados

Florbela Espanca







miss...


Aquela estrela, a sétima
a contar de ti, eras tu de novo?
A dos nomes escritos na parede
onde rastejam quiméricos os musgos? 
Nos telhados sobre pátios nocturnos?
As aves cravadas nos beirais,
a vide enforcada no ulmeiro,
o baixel dos dedos no ragaço
são canções nesta clausura.
Já não sei quem parte
quando és tu que partes.
Ou se sou eu quem fica.




Joaquim Manuel Magalhães







a sul de nenhum norte...








Um dia acorda-se e o abismo é berço
E o diabo mais do que um irmão.
(...)
Todo o desvio tem o seu preço.


Luiza Neto Jorge







Com um pedaço de carvão
com meu giz quebrado e
meu lápis vermelho
desenhar teu nome
o nome da tua boca
o signo das tuas pernas
na parede de ninguém.
Na porta proibida
gravar o nome de teu corpo
até que a lâmina de minha
navalha sangre
e a pedra grite
e o muro respire como um peito.

Ovtavio Paz





e tu sussurras:- não, não afastes a boca da minha orelha.
derrama dentro dela aquilo que não consegues dizer em voz alta.
e eu digo:
- as tuas mãos queimam-me a fala.
tu sorris, dizes:
- vem , sem medo, pela aridez do meu corpo.
no fundo de mim existe um poço onde guardo a tua imagem. é tempo de ta devolver. é tempo de te reconheceres nela.
Al Berto


a sul de nenhum norte















Não deixe portas entreabertas.
Escancare-as ou bata-as de vez.
Pelos vãos, brechas e fendas passam apenas semiventos, meias verdades e muita insensatez.
Flora Figueiredo








Conduzir sem ter acidentes,
comprar macarrão e desodorizante
e cortar as unhas às filhas.
Madrugar outra vez, ter cuidado
em não dizer inconveniências, depois
esmerar-me na prosa de algumas laudas
para que me estou nas tintas
e retocar também as faces.
Lembrar a consulta do pediatra,
responder ao correio, estender a roupa,
declarar o rendimento, ler uns livros
e fazer algumas chamadas telefónicas.
Gostava de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que quisesse
para fazer um monte de coisas estranhas,
coisas desnecessárias, dispensáveis
e acima de tudo inúteis e bobas.
Por exemplo, amar-te loucamente.

Amalia Bautista