ó guardador! afasta de mim a tua dor de ver o mundo
nao tenho culpa de que vás tão fundo nessa imensidão
e que transformes todas as coisas em tão profundo
- se abraçasses de vez os sons da vida sem a razão...
ó guardador! celebra comigo as paisagens que vês
todas as sombras são apenas um repouso sem o mal
uma dádiva da natureza a um descanso sem porquês
- onde encostar a cabeça é deixar o sonho ser real...
guarda-te de ti! e não te deixes perder por dentro
olha cá para fora e deixa-te enrolar nessa ilusão
- tudo pode ser diferente se feito com sentimento
guarda-te a ti! no espaço onde tens o coração
abre os braços a tudo excepto ao ferimento
- liberta-te de ser vítima da eterna solidão
ao guardador de todos nós
chuva...
É quando a chuva cai,
é quando olhado devagar que brilha o corpo.
Para dizê-lo a boca é muito pouco,
era preciso que também as mãos vissem esse brilho,
dele fizessem não só a música, mas a casa.
Todas as palavras falam desse lume,
sabem à pele dessa luz molhada.
Eugénio de Andrade
autópsia de Mia
perfume
(...)
será que entendes o enigma que sem saberes sou eu para ti? Será que alguma vez leste na minha pele toda a evidência, ao ponto de te embriagares, de quebrares muros, resistências, análises, trancas, algemas, receios talvez inúteis de brisas talvez fecundas?
Tu que te estatelas agora no céu de cada noite deserta, será que algum dia tornarás a ler o céu no chão? Será que em alguma papelaria escondida na cidade, encontrarei um dia um mapa para te ler sem te sufocar? Tu que me tropeças cada passo, será que tens ainda em ti, o único pulmão que já me fez respirar?
Vivo apenas uma praia oca. Nem areia tem. A primeira duna é árida e semelhante à última. Nada sei de mim. Mas sei quem tu és. És a única pergunta que não formulei. Será que ao menos sabes que eu não sei?
Manuel Cintra
autópsia de Mia
na sombra aguardava...
E na sombra aguardava o tempo numa
Longínqua, como quem flutua na última claridade e
reflecte nas margens da consciência.
Raramente trazia até si uma palavra, um nervo de luz
ou um rumor vigilante.
um desejo de espaço.
no seu pensamento.
autópsia de Mia
TRÍPTICO (breve estúdio prévio ao auto-retrato)
1.
rendam-se:
tristes contas do rosário
nascido dum par de algemas!
grilhetas evidentes
hálito de derrota.
hirtas estão,
quedam-se mudas,
sem voto de movimento.
no lado de cá. seco.
bem longe de todo o universo
onde as asas vão soar!
2.
voa música!
faz-te ao caminho
da linguagem de um poema.
tinge-me as células
que carregam uma sina prenhe
dos odores onde inalo
o sopro firme deste dia.
o dia da minha ventania!
hora sem retorno,
num movimento crepuscular,
dando o justo momento
ao rito imaculadamente sangrado
nos tons nunca difusos
lavrados em contínuos rasgos.
3.
chamam-lhe palavras.
digo-vos que sou eu!
photo by
Mark Freedom
toque...
seda extraída ao segredo - tocar e ser tocado,
sentir em si a ligeireza do fogo, a profundeza,
e estremecer, ficar em chaga;
e com dedos e sedas manter às labaredas,
entre terror e louvor, a comburente,
combustível composição de tudo:
ser queimado vivo,
ser luminoso.
Herberto Helder
autópsia de Mia
fade into you
I want to hold the hand inside you
I want to take a breath that's true
I look to you and I see nothing
I look to you to see the truth
You live your life, You go in shadows
You'll come apart and you'll go black
Some kind of night into your darkness
Colors your eyes with what's not there
Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
A stranger's light comes on slowly
A stranger's heart without a home
You put your hands into your head
And then smiles cover your heart
Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
Mazzy Star
autópsia de Mia