Pode não ler. Pode, se quiser, fechar os olhos, dormir. Ou só olhar em volta. O quê, quem: os outros condenados. Irmãos em sorte e miséria.
Tenha tanta pena deles como a que eles mesmos estão a ter, deles e de si, neste momento.
Rui Caeiro
O silêncio e a sua costura,
a agulha nocturna que tudo
concilia: a carne cospe
nervos da cabeça ao túmulo frio
em que se fecharão soberanas
as margens da impaciência:
cicatriz sensível aos dedos,
mão alheia que agora
se inquieta.
Vasco Gato
Tudo é inimitável:
a cabeça quase em pudor reclinada
sobre o desalento
de um inverno distante,
os cabelos abertos na incerta
direcção dos ombros,
o pescoço igual a um fragmento de coluna
( é sempre tão longo caminho um fragmento).
as mãos incólumes que tornam
misterioso o fogo
José Tolentino Mendonça
A sul de nenhum norte...
Disse-to pelas nuvens
Disse-to pela árvore do mar
Por cada onda pelos pássaros nas folhas
Pelos calhaus do ruído
Pelas mãos familiares
Pelos olhos que se volvem rosto ou paisagem
E o sono dá-lhe o céu da sua cor
Por toda a água da noite
Pelas linhas das estradas
Pela janela aberta por uma fronte descoberta
Disse-to pelos teus pensamentos pelas tuas palavras
Toda a carícia toda a confiança sobrevivem.
Paul Eluard
Your absence has gone through me
Like thread through a needle.
Everything I do is stitched with its color.
W.S. Merwin
Todo o possível se eterniza, vive sempre mais que o realizado, prolonga-o, ilimita-o, dá dele a pálida imagem duma realidade profunda, desafiadora.
Ernesto Sampaio
A sul de nenhum norte...
Vivemos de palavras. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem.
Raul Brandão
e só encontras a noite por onde entraste
finalmente nu - a loucura acesa e fria
iluminando o nada que tanto procuraste.
Eugénio de Andrade
Há a silenciosa linguagem de fazer amor - A descoberta da carne - o erótico
O abrir de portas a palavras e prazerMomentos em que o tempo pára e tudo o resto começa
As palavras não devem ser só preliminares
A língua não existe apenas para falar
E. Ethelbert Miller
E estou só e a noite.
Há palavras que requerem uma pausa e silêncio.
O lento acordar das vozes submersas: uma treva
Herberto Helder
Há palavras que requerem uma pausa e silêncio.
O lento acordar das vozes submersas: uma treva
Herberto Helder
Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima, silêncio que fala, tempestades sem vento, mar sem ondas, pássaros presos, douradas feras adormecidas, topázios ímpios como a verdade, outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro duma árvore e são pássaros todas as folhas, praia que a manhã encontra contelada de olhos, cesta de frutos de fogo, mentira que alimenta, espelhos deste mundo, portas do além, pulsação tranquila do mar ao meio-dia, universo que estremece, paisagem solitária.
Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas.
Quem conheça o sul e a sua transparência
também sabe que no verão pelas veredas
da cal a crispação da sombra caminha devagar.
De tanta palavra que disseste algumas
se perdiam, outras duram ainda, são lume
breve arado ceia de pobre roupa remendada.
Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão
era morada e o instrumento de alegria.
Esse eras tu: inclinação da água.
Na margem,
vento
areias
mastros
lábios,
tudo ardia.
Eugénio de Andrade
You carry away with you a reflection of me, a part of me. I dreamed you; I wished for your existence. You will always be a part of my life. If I love you, it must be because we shared, at some moment, the same imaginings, the same madness, the same stage.
Anais Nin
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me
Ana Hatherly
A água completamente negra. Ruído de corpo caindo pesado na areia. A onda que regressa a onda. A nova onda avança. Ruído de saliva enorme as ondas. Tentar ver. Aproximar. O corpo escuro. Percorrer. Encontrar um pouco de rosto.
Ana Hatherly
A noite é uma nuvem solitária,
só uma cor.
(E tu, e eu?)
A noite é uma brisa solitária,
um só ardor.
(E tu, e eu?)
A noite é uma água solitária,
só um fulgor.
(E tu, e eu?)
Penso nessa água, nessa brisa, nessa nuvem?
(E tu?)
Tu, nesse ardor, nessa cor, nesse fulgor?
(E eu?)
Juan Ramón Jimenez
a sul de nenhum norte...
Yes, I need you, my fairy-tale. Because you are the only person I can talk with about the shade of a cloud, about the song of a thought — and about how, when I went out to work today and looked a tall sunflower in the face, it smiled at me with all of its seeds.
Vladimir Nabokov
Nas águas frígidas e plácidas,
em que o nosso amplexo é vigilância extinta,
eu busco ter-te, amor, mas contemplar-te
é recordar ambíguo de antes de abraçar-te,
e, tendo-te, não tenho, porque quero ter-te.
Dessas águas bebi; demais à beira delas
vi reflectidas luzes de janelas
que a noite e o amor apagam, uma a uma.
Simples te falo de uma noite imensa.
Jorge de Sena
todas as mulheres são sôfregas no respirar
e têm a garganta atada a um baque de fúria
Henrique Manuel Bento Fialho
Duas pessoas em igual medida silenciosas não têm de falar da melodia das suas horas. Esta é, em si e para si, o seu elemento comum. Ergue-se entre elas como um altar ardente, e elas alimentam a chama sagrada, temerosamente, com as suas raras sílabas.
Rainer Maria Rilke
Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço demais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrrer antes de alguém chegar
ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem
ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer
ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não é uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça
ainda não há cama só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração
António José Forte
Mas não me preocupa ser desconhecido
No meio destes corpos quase contemporâneos,
Vivos de modo diferente do meu corpo
De terra louca que pugna por ser asa
E alcançar esse muro do espaço
Que separa os meus anos dos teus futuros.
Quero só o meu braço sobre outro braço amigo,
Que outros olhos partilhem o que olham os meus.
Embora não saibas com quanto amor procuro
Por esse abismo branco do tempo que virá
A sombra da tua alma, para dela aprender
A ordenar minha paixão por uma nova medida.
Luís Cernuda
Quanto ao silêncio:
bem entendido, amor, vem o seu tempo de calar.
Quem diria do retorno, quem diria.
Quando ao silêncio:
Quando ao silêncio:
onde íamos amor, neste inventário?
os dias frios, ó rios de inóspita jusante.
Quanto ao silêncio:
os dias frios, ó rios de inóspita jusante.
Quanto ao silêncio:
faz as malas, amor, para o inverno.
O sul existe.
E a esperança novamente a monte.
E a esperança novamente a monte.
A. M. Pires Cabral
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