Maria do Rosário Pedreira
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Maria do Rosário Pedreira
entre a saliva e os sonhos há sempre
uma ferida de que não conseguimos
regressar
e uma noite a vida
começa a doer muito
e os espelhos donde as almas partiram
agarram-nos pelos ombros e murmuram
como são terríveis os olhos do amor
quando acordam vazios
Alice Vieira
Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.
António Franco Alexandre
touch...
Juan Luis Panero
Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele,
onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos.
Tantas vezes o suor os traz consigo da memória,
que não tenho na pele poro através do qual
eles não procurem sair quando transpiro.
A pele é o espelho da memória.
Luís Miguel Nava
Fica ao menos o tempo de um cigarro, evita comigo que este tempo ande. Lá fora são as casas, vive gente à luz de um candeeiro, o som que nos chega apagado pela distância só denuncia o nosso silêncio interrompido. Ajuda-me, faremos o inventário das coisas menos úteis, mágoas na mágoa maior do tempo. Fica, não te aproximes, nenhum dia é menos sombrio, quando anoitecer vamos ver as árvores cercando a casa.
Helder Moura Pereira
Na lista dos teus fins venho no fim
de uma página nunca publicada,
e é justo que assim seja.
Embora saiba
mexer palavras, e doer de frente,
e tenha esse talento conhecido
de acordar de manhã, dormir à noite,
e ser, o dia todo, como gente,
nunca curei, como previa, a lepra,
nem decifrei o delicado enigma
da letra morta que nos antecede.
Por muito te querer, talvez pudesses
dar- me um lugar qualquer mais adiante,
despir- te de pudor por um instante
e deixá-lo cobrir-me como um manto.
António Franco Alexandre