A ressaca dos dias trazia-o à costa da forma habitual. Combalido, levantava primeiro a cabeça, deixando-se rolar na cama, qual insecto kafkiano em aprendizagem dos ritmos corporais, até alcançar o extremo, altura em que podia já colocar os pés no chão e levantar o torso cadavérico encimado pela cabeleira desgrenhada tão ao gosto da moda. O insistente sabor a papel químico que sentia na boca era já escovado enquanto analisava as olheiras que lhe emprestavam um ar heroin-chic. Preparava o banho. Uma vez saído, limpava-se atentamente, após o que espalhava pelo corpo e pela face toda a panóplia de cremes e lenitivos da dolorosa decadência a que se submetera. O cabelo a necessitar de cuidados. Voltava ao quarto e a música começava. Límpida, cativante, energética, bem ao sabor do seu tempo, ao sabor da passerelle diária entre tantos outros na cidade. Vestido, arranjado para a vida, dava uma palmada na cara na tentativa de ganhar alguma cor. Em vão. Sentado na cama, fazia traços no espelho de onde aspirava a vida. O cheiro dos dias. Com ar afectado e dançante, saía para a cidade. Nada como ser bonito.
4 comentários:
Olá,
Tenho vindo ocasionalmente espreitar este blogue e gostaria só de fazer um pequeno reparo acerca do poema (que eu adoro) do vosso cabeçalho - apesar de esta tradução ser da autoria do Adolfo Luxúria Canibal, penso que deveriam creditar o verdadeiro autor: Heiner Müller.
um (o) cheiro, uma imagem, uma presença, um ser, o que for para encarar os dias...
Interesnte post. Un cordial saludo
@jorge: tens razão. grato.
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