procuro-te...
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque com a forma de um grito de alegria.
Ou a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água
entre o azuldo prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti e o teu nome
ilumina as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre
– procuro-te.
Eugénio de Andrade
autópsia de Mia
OLHARES
ausência
Nuno Júdice
autópsia de Mia
Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.
Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guia
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.
Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.
Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva.
José Gomes Ferreira
autópsia de Mia
Dar o outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
oiço pedirem-me que escolha;
e que deixe para trás a inquietação, a dor,
um peso de não sei que ansiedade.
Mas levo comigo tudo o que recuso.
Sinto colar-se às costas um resto de noite;
e não sei voltar-me para a frente,
onde amanhece.
Nuno Júdice
autópsia de Mia
Hoje acordámos em sitios diferentes...
Eu, no meio das ruínas que se movem, das sombras que sopram,
das almas em fuga para dentro da vida.
Tu, no meio das ruínas paradas, das sombras que já não respiram,
das almas em fuga para longe da vida.
Amanhã, sempre amanhã, tentaremos acordar no mesmo sítio de sempre
e o abismo do medo e da dor irá rir-se de nós enquanto nos engole ou nos deixa passar.
Fernando Ribeiro
autópsia de Mia
Que não...
Vestia a alma por fora e paria sonhos por pura teimosia, só porque achava que devia continuar a respirar. Mas os sonhos, também teimosos por mal paridos ou por outros tropeços do caminho, iam-lhe morrendo no vôo e tapando a alma que queria ao sol. Exausta, trocou a última réstea de sonho por um lampejo do futuro que não via.
Agora sim, pode finalmente fingir que nunca existiu.