não te deixarei morrer, amor

quem és tu que avanças o tempo no meu calendário?
que o escrutinas como no talho e divides em doses duplas?
pago-te a carne cirurgicamente cortada
e levo-te pendurado em mim até ao congelamento cínico
escolho a gaveta que promete melhor temperatura de conservação
e quase desejo esquecer-te
que esta seja uma câmara fúnebre irretornável
que o gelo devore a etiqueta da tua identidade
como um sopro de cera nas velas do teu quarto
que nunca a fome me faça recuperar-te no microondas
que a sede encoste ao lado da razão partida em farpas
que a minha boca possa ser líquida como antes
que o teu barco desencalhe e não derrame petróleo
na escuridão
quase desejo violar-te
separar-te em grãos no fundo de uma chávena
fumar-te consciente dos malefícios do tabaco
arrancar-te as gengivas e acompanhar com natas
passar o resto no triturador um dois três
saber em um que móis
em dois que dóis
em três que matas
fulminar-te na cama
e profanar o descanso da criança em chamas
quase desejo penetrar-te
lavar-te a trinta graus com analgésicos
secar-te no ponteiro das roupas delicadas
e enxugar-te depois com estaladas
eis a minha vingança
voltarei a ti num dia em que estejas acordado
vou esfregar a louça que entope a banca da tua consciência
e meter-me como açúcar nos teus dentes
deixa-me entrar em ti
quase desejo perdoar-te
tirar do frigorífico a fatia de sono dos teus genes
e adormecer

7 comentários:

João disse...

Gostei muito,

Avó do Miau disse...

Belíssimo, parabéns!

www.amar-ela.com

Janelas da Alma disse...

Ai, Alice, querida!...

Tu assim vais dar mesmo cabo da minha sensibilidade!...
Vou tentar explicar-te, uma vez mais, o que fazes sentir com as tual palavras mágicas e arrumadas!...

Como sabes, a minha paixão pela Cidade Fluctuante, e pelos olhares que ela me permite, é eterna. Nunca pensei poder vir a encontrar outra vez uma beleza semelhante. Porém, depois de ler e sentir o que escreves, tenho de reconhecer o meu erro...Tu, és simplesmente a versão humana e escrita da minha Veneza, igualmente serena e bela, e com uma magia que só a ti pertence!...
Beijinhos,

Nuno Osvaldo

Dani disse...

Emoção industrial?

Tetracloro disse...

Alice, fulmina-me e entra. Beijinho.

kathy disse...

adorei...

Simone disse...

Sem palavras Alice...
Parabéns. Está divino. Maravilhoso. Fantástico.
Eu já estav com saudades de ler-te...
Beijos