Por uma vez conta como o corpo se ajusta à superfície
das tuas palavras. Fala de um depois anterior, desse sono
demente na fissura da luz; do violento voo ou da ferida
cíclica, a ausência excedendo-se na pele quando a desoras
perfumas minhas mãos. Estende-se o calor aos lábios,
o Verão simula a duração no verso, circula a água, vigorosa,
no fundo do poço até desaparecer na cama muda.
Nada é o que parece, lembra-se o que se esquece e eu digo
os dedos descalços dissolvem em tua boca o mel à flor dos
destroços.
Olha-me: deita o olhar em meu vestido, tira-o
num gesto ébrio e precipitado como a um prisioneiro,
os peixes sobem lestos no lago imoderado e a noite volta,
lenta, adormecida.
Dou-te o que não tenho – a história
de um rio exultante a explodir na boca em versão romântica,
poema sem trágicos sulcos ou fala completa.
E tu, tu dás-me
o que sou: metáfora doendo-se alto onde acaba o texto.

Ana Marques Gastão

Voltemos a isto, ao cálculo dos danos
na máquina do mundo, à impotência do riso
contra tudo o que não sabemos mudar:
a morte, o egoísmo, o levadiço coração
humano. Porque não há mais nada (ok,
há o amor – vai-te foder) e nos negócios
da razão o pessimismo é a moeda
do momento. Regressemos ao ruído,
à sombria comissão liquidatária
desta fábrica de trapos coloridos.
Se não há melhor emprego para a culpa
e os domingos custam dias a passar.


José Miguel Silva