Que rompam as águas:
é dum corpo que falo.

Nunca tive outra pátria,
nem outro espelho,
nem outra casa.

É dum rio que falo,
desta margem onde soam ainda,
leves,
umas sandálias de oiro e de ternura.

Aqui moram as palavras;
as mais antigas,
as mais recentes:
mãe, árvore,
adro, amigo.

Aqui conheci o desejo
mais sombrio,
mais luminoso,
a boca
onde nasce o sol,
onde nasce a lua.

E sempre um corpo,
sempre um rio;
corpos ou ecos de colunas,
rios ou súbitas janelas
sobre dunas;
corpos:
dóceis, doirados montes de feno;
rios:
frágeis, frias flores de cristal.

E tudo era água,
água,
desejo só
dum pequeno charco de luz.

De luz?
Que sabemos nós
dessas nuvens altas,
dessas agulhas
nuas
onde o silêncio se esconde?
Desses olhos redondos,
agudos de verão,
e tão azuis
como se fossem beijos?

Um corpo amei,
um corpo, um rio,
um pequeno tigre de inocência,
com lágrimas
esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas,
arrefecidas
primaveras nas mãos.

Quem não amou
assim? Quem não amou?
Quem?
Quem não amou
está morto.

Piedade,
também eu sou mortal.
Piedade
por um lenço de linho
debruado de feroz melancolia,
por uma haste de espinheiro
atirada contra o muro,
por uma voz que tropeça
e não alcança os ramos.

Dum corpo falei:
que rompam as águas.

Eugénio de Andrade



dá-me algo mais que silêncio ou doçura
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra

não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz

dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!

carlos edmundo de ory



porque hoje a noite me parece uma invenção em aberto
sobre a cama abandono palavras

tenho o tempo nas pálpebras
assim, quando alguém me perguntar pelo sentido da insónia

eu, parada no meio do quarto,
direi que não sabia que na solidão se grita alto
para sobreviver ao medo

Maria Sousa



O que é certo é que gostei de ti.
O resto não: se exististe, e se assim foi,
qual a cor dos olhos, ora verdes
ora cinzentos, deles levantou-se uma vez
um bando de andorinhas. Quais. As rápidas,
as que não andam, as que se amam no ar.
Como foi. Ficaste doente ou coisa assim,
levaram-te, muito se passou,
acho que ia ter outro filho e esqueci-me de ti
até ouvir-te, esta noite, a horas impossíveis,
- vem comigo, é tempo. Larga tudo e sai,
espero por ti ao pé da cancela.
Mas cheguei lá e o trinco
estava solto, batia ao vento
contra o poste, fechei-o, voltei para trás,
a pensar em ti, que estiveste lá,
sabe-o Deus, que abriste a cancela,
que gostei de ti e também
que a porta não encaixava bem.

Eva Gerlach

Acordar

Assim ficamos a conhecer mulher que mais tarde saberemos chamar-se Arminda, e a sua filha Elisabete

Após um violento ataque de tosse, baba e ranho, arquejante ainda, dispara as primeiras palavras que já tardavam nesta história, «Foda-se pró caralho!». Procura os óculos e coloca-os nervosamente na cara, olha em volta e vê Elisabete na porta, dinossauro ao lado, que a fixa curiosa, olha para o alto e vê a trave do tecto quebrada a meio e fica ali parada, no que parece uma reflexão. Olha uma vez mais a trave e exclama «Puta que pariu!».

dos dias



Podemos ser como bonecas de corda
e olhar para o mundo com olhos de vidro
e jazer durante anos entre rendas e lantejoulas
o corpo recheado de palha
dentro de uma caixa de feltro
e a cada toque de luxúria
gritar sem nenhuma razão
Ah, que feliz sou!

Forugh Farrokhzad



Estendi a mão por qualquer coisa inocente
uma pedra, um fio de erva, um milagre
preciso que me digas agora
uma coisa inocente

Não uses palavras
qualquer palavra que me digas há-de doer
pelo menos mil anos
não te prepares, não desejes os detalhes
preciso que docemente o vento
e longínquo e o próximo
espalhe o amor que não teme

Não uses palavras
se me segredas
aquilo que no fundo das nossas mentiras
se tornou uma verdade sublime.

José Tolentino Mendonça

and i'll mirror images back at you, so you can see the way i feel it too ...


mas a ti
quero olhar-te
até estares longe do meu medo
Alejandra Pizarnik

Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer pelo menos não fui tolo e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

Clarice Lispector

da ausência



De veres o meu lugar.
De me veres só apagando a luz do quarto
cada noite no escuro a respirar como um clarão.
De me veres do lado exterior.
Muro, fenda no muro e sem força para esperar.

De te hospedares em mim.
De descobrires a posição da árvore fixa no crescimento
da árvore que agora sou circulando com dificuldade
do fruto cortado para ocupar as mãos.
De o veres empunhado como arma para afastar o medo.

De veres a casa.
De estares à minha beira e no quarto ao lado
vazio, no vazio búzio
de ocupares o vazio para o libertar.
De veres a pedra branca dos meus olhos
seixo dos rins
pedra polida de tanto rebentar
primavera de si mesma.
De anunciares em silêncio
o nada que salva a minha mão perdida
remo à superfície teimando contra
o peso da âncora de fechar os olhos
e inclinar o corpo afogado.
De perdoares.

Por ter-me apagado tão longe de te ser luz
de te ser lâmpada horas e horas

à noite e no Inverno.
(...)
Estou por terra e vejo já do alto com a saliva
a saber-me ao bolor do chão.
De estar sentado e inútil - como se tudo à minha volta me cegasse -
Apodrecendo a cadeira um odor da terra - como a tempestade -
Cansado, cansado.
Sem força para ver a tua face.


Daniel Faria

com especial agradecimento ao meu publisher...



Eu vi herberto uma actriz a incendiar palavras num palco
quarto de hotel

as palavras dadas e as outras caladas num lugar saturado de
vapor de água
e aquelas gravadas na calçada perdidas a tentar perceber como
se escreve
um nome gritando um nome para a voz encurralada abandonar
a cabeça

eu vi a cerzidura de cada palavra a resistir à dor à tristeza
ao cansaço
de outras palavras arrancadas da sua pele na passagem
dos dias
palavras que se contaminam e se perdem sem ela saber já
de quem são
os rostos de mortos e vivos atropelados num
caderno imaginário

eu vi um corpo curvado subitamente brilhar num
campo de madressilvas
lá longe onde os amantes caminham sem rumo atrás
de sombras amarelas
onde os amantes se perdem em dobras de esquinas e espelhos
e olhares
os corpos traídos pela inesperada declinação da luz nos
seus ombros

eu vi uns cabelos negros tornearem uma lágrima que escurece
o dia
escurece a claridade de um gesto que vem de longe e
se imobiliza
talvez uma borboleta negra como as que de dia nos dizem
da noite
e nos fazem estancar o sangue que corre nas veias ávido
de água e luz

eu vi resistir um corpo branco amarelecido por uma luz que
não há
rodar na direcção da toscânia à procura da noite que nunca
tem fim
porque há uma noite eterna para os que acreditam na noite
sem fim
nos fios invisíveis que tecem palavras e pétalas de rosa
e desejos

eu vi umas mãos delicadas a tomarem em cuidados uma menina
perdida
a da memória emprestada daquele em quem as palavras são
salvação
perdidos eu tu e ela em enredadas palavras demasiado frágeis
para a verdade
num tempo em que já não florescem infinitos embrulhados em
laços azuis

eu vi o horizonte recortado pela deusa magoada pelo amor que
já não há
ou nunca houve
e o silêncio a encher o quarto e a coarctar o sangue
nas veias
subitamente substituido por um liquido verde que renova
mitos e mundos
caminhos ladeados por anjos esquálidos e deuses de
olhos vazados

eu vi a alegria quando se pensa que a tristeza são uns olhos
castanhos
marejados de lágrimas ou apenas a aflorarem o lado mais difícil de
dizer
do amor que já não virá das ilhas rodeadas por mar e por ilhas de
ilhas
olhos castanhos a desafiarem deuses e os vazios oceânicos das
distâncias

eu vi os teus olhos surpresos surpreenderem um homem sentado no
sonho
das palavras que se misturam umas com as outras como contas
coloridas
com imagens intermináveis semeadas de sonhos com plantas
carnívoras
sonhos que invadem as noites e nos empurram para o sol que nos
cega

eu vi nos teus olhos a ternura que submete os corações de touros
selvagens
a frescura e a luz que inundam as terras devastadas e estéreis dos
desamores
e resgatam da sombra das águas extenuadas as algas e os líquenes
precisos
à renovação das palavras deslumbradas esmagadas por securas e
tédios

eu vi a tua água límpida inundar os caminhos secos das nossas
memórias
a seiva que limpa as veredas escuras do nosso sangue em vão
derramado
o mel que suaviza as nossas gargantas secas e exaustas pelo
inenarrável
o sangue rejuvenescido que expulsa das nossas veias o lixo do
passado

eu vi a tua boca proferir fórmulas mágicas
"Obedece-me, meu coração. Eu sou o teu senhor.
Enquanto estiveres no meu corpo não me serás hostil:"
e eu sentado no chão a mimar o canto mágico furtado ao livro dos
mortos
com a esperança de acender na noite palavras e corpos e
olhares novos

eu vi os teus olhos cravados no chão à procura de sinais
cifrados
de enigmas que iluminem um pensamento novo ainda que
breve
uma luz que obscuramente possa desvendar as trevas do
mundo
e eu atarefado a desenhar no ar criptogramas para te
oferecer

eu vi aproximares-te de mim arrastando uma longa cauda de
fogo frio
e as tuas mãos a trespassarem sem dor o meu corpo desabitado e
dócil
os meus pensamentos desenhados pela mão esquerda de uma
criança
a minha alma que teimosamente busca ainda na lama as pérolas puras

eu vi e não vi tudo o que vi ou imaginei ou não imaginei e vi-te e
não te vi
sonhei-te talvez só no meu sonho vagabundo de inventar seres e
sonhos
fechado no quarto de hotel palco onde tu és verdade isso é
mesmo verdade
tu em estado de graça a incendiar palavras que estalam como
sal queimado

eu vi uma actriz a incendiar palavras
em estado geral de graça
a ser feliz
eu vi.


Carlos Alberto Machado