Eu vi herberto uma actriz a incendiar palavras num palco
quarto de hotel
as palavras dadas e as outras caladas num lugar saturado de
vapor de água
e aquelas gravadas na calçada perdidas a tentar perceber como
se escreve
um nome gritando um nome para a voz encurralada abandonar
a cabeça
eu vi a cerzidura de cada palavra a resistir à dor à tristeza
ao cansaço
de outras palavras arrancadas da sua pele na passagem
dos dias
palavras que se contaminam e se perdem sem ela saber já
de quem são
os rostos de mortos e vivos atropelados num
caderno imaginário
eu vi um corpo curvado subitamente brilhar num
campo de madressilvas
lá longe onde os amantes caminham sem rumo atrás
de sombras amarelas
onde os amantes se perdem em dobras de esquinas e espelhos
e olhares
os corpos traídos pela inesperada declinação da luz nos
seus ombros
eu vi uns cabelos negros tornearem uma lágrima que escurece
o dia
escurece a claridade de um gesto que vem de longe e
se imobiliza
talvez uma borboleta negra como as que de dia nos dizem
da noite
e nos fazem estancar o sangue que corre nas veias ávido
de água e luz
eu vi resistir um corpo branco amarelecido por uma luz que
não há
rodar na direcção da toscânia à procura da noite que nunca
tem fim
porque há uma noite eterna para os que acreditam na noite
sem fim
nos fios invisíveis que tecem palavras e pétalas de rosa
e desejos
eu vi umas mãos delicadas a tomarem em cuidados uma menina
perdida
a da memória emprestada daquele em quem as palavras são
salvação
perdidos eu tu e ela em enredadas palavras demasiado frágeis
para a verdade
num tempo em que já não florescem infinitos embrulhados em
laços azuis
eu vi o horizonte recortado pela deusa magoada pelo amor que
já não há
ou nunca houve
e o silêncio a encher o quarto e a coarctar o sangue
nas veias
subitamente substituido por um liquido verde que renova
mitos e mundos
caminhos ladeados por anjos esquálidos e deuses de
olhos vazados
eu vi a alegria quando se pensa que a tristeza são uns olhos
castanhos
marejados de lágrimas ou apenas a aflorarem o lado mais difícil de
dizer
do amor que já não virá das ilhas rodeadas por mar e por ilhas de
ilhas
olhos castanhos a desafiarem deuses e os vazios oceânicos das
distâncias
eu vi os teus olhos surpresos surpreenderem um homem sentado no
sonho
das palavras que se misturam umas com as outras como contas
coloridas
com imagens intermináveis semeadas de sonhos com plantas
carnívoras
sonhos que invadem as noites e nos empurram para o sol que nos
cega
eu vi nos teus olhos a ternura que submete os corações de touros
selvagens
a frescura e a luz que inundam as terras devastadas e estéreis dos
desamores
e resgatam da sombra das águas extenuadas as algas e os líquenes
precisos
à renovação das palavras deslumbradas esmagadas por securas e
tédios
eu vi a tua água límpida inundar os caminhos secos das nossas
memórias
a seiva que limpa as veredas escuras do nosso sangue em vão
derramado
o mel que suaviza as nossas gargantas secas e exaustas pelo
inenarrável
o sangue rejuvenescido que expulsa das nossas veias o lixo do
passado
eu vi a tua boca proferir fórmulas mágicas
"Obedece-me, meu coração. Eu sou o teu senhor.
Enquanto estiveres no meu corpo não me serás hostil:"
e eu sentado no chão a mimar o canto mágico furtado ao livro dos
mortos
com a esperança de acender na noite palavras e corpos e
olhares novos
eu vi os teus olhos cravados no chão à procura de sinais
cifrados
de enigmas que iluminem um pensamento novo ainda que
breve
uma luz que obscuramente possa desvendar as trevas do
mundo
e eu atarefado a desenhar no ar criptogramas para te
oferecer
eu vi aproximares-te de mim arrastando uma longa cauda de
fogo frio
e as tuas mãos a trespassarem sem dor o meu corpo desabitado e
dócil
os meus pensamentos desenhados pela mão esquerda de uma
criança
a minha alma que teimosamente busca ainda na lama as pérolas puras
eu vi e não vi tudo o que vi ou imaginei ou não imaginei e vi-te e
não te vi
sonhei-te talvez só no meu sonho vagabundo de inventar seres e
sonhos
fechado no quarto de hotel palco onde tu és verdade isso é
mesmo verdade
tu em estado de graça a incendiar palavras que estalam como
sal queimado
eu vi uma actriz a incendiar palavras
em estado geral de graça
a ser feliz
eu vi.
Carlos Alberto Machado