on se regarde



e como estrelas duplas consanguíneas,
luzimos de um para o outro nas trevas.

herberto helder

decadencia




Resvalas neste sopro.
Sabes que tens o olhar ferido desde sempre,
que o incêndio das palavras em trânsito
celebra prescritas sílabas, ancora dos ritos,
desprevenidos equinócios.
Dantes,
havia um mar crispado na fissura dos lábios.
Hoje,
apenas algumas gotas de sal.

Albano Martins


Os olhos, imensos, exprimiam simultaneamente um terror infantil,
uma adulta curiosidade.
Vai ter que... que me aprender tudo.
Corrigiu: Que me ensinar tudo.
David Mourão-Ferreira
quando os nossos corpos se separaram olhámo-nos quase a desejar ser felizes.vesti-me devagar, mas o corpo a ser ridículo. disse espero que encontres um homem que te ame, e ambos baixámos o olhar por sabermos que esse homem não existe. despedimo-nos. tu ficaste para sempre deitada na cama e nua, eu saí para sempre na noite. olhámo-nos pela última vez e despedimo-nos sem sequer nos conhecermos.
José Luis Peixoto

allgarve - parto I



A silly season inicia-se com a preensão do país ao alto e com o povo a misturar-se ao jet set na auto-estrada rumo a sul, altura em que se separarão as águas, uns para povoar a Quarteira, outros para andar às voltas na marina de Vilamoura, outros ainda para serpentear nas ruas de Albufeira ou de Lagos, meia dúzia deles para se acostarem em remansos da Quinta do Lago. O cenário escolhido mediante as posses ou o cartão de crédito apresenta invariavelmente as ofertas de um Allgarve de poster: sol, praias de águas mornas e seios rosados, ingleses bêbedos acompanhando partenaires de bacocos vestidos nocturnos mais propícios ao engate fortuito, ementas em inglês, preços em libras, ou pelo menos ao seu valor.
Como diz António Lobo Antunes, o Allgarve é um cenário pintado em cartão. As figuras que nele se arrastam, lá ao longe na borda de água ou pelas calhas da cidade parecem alimentadas a sonhos de paraíso temperado com cerveja morna, tais seres borbulhantes de desejo de um dolce fare niente que sabem condenado à partida, e que tentam, a todo o custo abarcar na sua plenitude, entre passeios à beira mar e shots emborcados em pose histriónica, noite fora, noite anónima.
É o Allgarve do special cream constante da fabulosa obra literária apresentada pela Governadora Civil do burgo e que consagra a proeminente figura cultural de Zézé Camarinha, o homem que «comeu» para cima de mil mulheres e que delas guarda fotos com dedicatória para exibir a qualquer pasquim que lhe apareça. É o Allgarve dos hotéis que ostentam estrelas apenas correspondentes ao preço que cobram. É o Allgarve da festa permanente e da lata de atum em conserva. O Allgarve, enfim, de todos e para todos, bem vindos sejam os que vierem por bem, que aos que venham por mal os deuses castigarão por certo; a celeridade da justiça praticar-se-á póstuma, ao ritmo do sol deste canto que parece de outro país.

E, no entanto, não há ano em que não arrume as coisas na traquitana e me ponha a caminho para lá passar uma semana. Trata-se já de uma espécie de tradição de família, esta coisa de lá ir parar. Devo confessar que me faz bem.
Não somos adeptos de grandes confusões, festas, animações em technicolor, pelo que as nossas estadias no Allgarve se traduzem mais ou menos pela seguinte fórmula: apartamento – piscina – esplanada – praia – esplanada – piscina – apartamento – saída nocturna. Esta rotina parece ser a adequada a quem não quer fazer nada, inclusivamente pensar e, aparentemente, resulta.
Existem, ainda assim, algumas coisas que me fazem pensar e uma pergunta recorrente – que reflecte a minha profunda ignorância, a par da inequívoca condição de turista – assalta-se sempre que lá estou: onde vivem os allgarvios? Não espero resposta. Não sabê-la remete-me para a mais profunda ignorância acerca daquelas pessoas, deixando-me aceder a uma espécie de fleuma muito colonialista. É nestes momentos que consigo imaginar-me dono de uma qualquer fazenda em África ou na América latina. A verdade é que esta é a única semana em que tenho uma série de pessoas que estão lá para me servirem. Isso, o calor, as vias e os prédios mal enjorcados, a lentidão dos processos, a vida em câmara lenta, tudo isso junto me transporta para uma dessas situações em que, de fato de linho e panamá na cabeça, aceno ao empregado que, sorridente, me traz um copo e uma garrafa de uma qualquer bebida com álcool, mais os fósforos para o charuto que acendo em atitude contemplativa da descarga de mais um navio que chega. Por favor, não me interpretem mal. Ou façam-no, se preferirem. Ou se acharem interesse nisso.
Quanto ganhará um allgarvio? Pouco, decerto. Mas até isso parece dar colorido à história: afinal, de que me serve ir de férias se não tiver a impressão de ser rico? Sabendo, como sei com toda a certeza, que não hei-de misturar-me com o jet set (ok, o termo é abusivo, eu sei) em outro local que não seja a auto-estrada, sirvo-me desta triste oposição.

A realidade dos allgarvios parece ser esta, a de um povo eternamente colonizado por pessoas de fato de linho e panamá na cabeça, fumando charutos ostensivos e emborcando uns copos enquanto observam o trabalho mal pago, quando pago.
Trabalham de dia. Fazem biscates à noite. São portugueses, brasileiros e alguns outros de tez escura. O pouco que ganham serve para pagar o supermercado a preço de turista. Vivem nos arredores, em locais incógnitos. Movimentam-se nas ruas sorridentes «best drinks for you!» ou entre mesas «thank you sir, come again!». Cantam canções cabotinas dos pimba ingleses «sweet caroline» nas esquinas dos bares, de olho na camone bêbeda. «Clutching at Straws».
E eu, nós, movemo-nos no pitoresco da coisa, na apreciação das artes de vida, fotografamos e recordamos, fingindo não reparar em putos que se movem na noite pegajosa de mãos alarves. Somos simples, assim… «Lembras-te deste ano? O fulano que estava à porta daquele bar a cantar canções do Cat Stevens? E a inglesa da mesa ao canto?».
E os turistas continuam às voltas na marina de Vilamoura, sempre às voltas. Continuam a serpentear as ruas nocturnas entre canecas de cerveja. Continuam a arrastar-se à borda de água como lagostas suadas. Continuam a pagar, muito, sem pensar por um instante para onde irá esse dinheiro. Não lhes cabe a eles pensá-lo, afinal estão de férias.

As praias allgarvias são praias de calor e claridade, de cheiro a bronzeador e gritos de crianças. Estas praias são a razão da nossa ida anual ao Allgarve, já que em terras nortenhas, se bem que haja claridade e calor, já das águas não se poderá dizer o mesmo – embora deva confessar que, mesmo no Allgarve, será necessária alguma sorte para me apanhar em ambiente aquático, não porque não goste, que adoro, mas porque ainda assim a água me parece fria na maioria das vezes. As águas allgarvias são mais quentes alguns graus que as nortenhas e propiciam longos banhos restauradores do corpo que, debaixo do sol agressivo, parece empolar até estalar.
Uma das coisas que mais aprecio quando em férias nessas praias é a caminhada matinal, sem pressas, ao longo da linha da água, altura em que é permitido inspirar sem os cheiros agressivos que começarão a aparecer lá mais para o meio da manhã. Está mais calma, a praia, por essas horas, sendo possível apreciar devidamente a beleza da paisagem, coisa lunar em pleno dia de um lado, coisa aquática e apelativa por outro, descontado que fique o assassínio praticado pela construção à borda de água, sintoma da permissividade com que sucessivas administrações da região têm encarado a actividade. Mas concentro-me na paisagem, autêntico calmante e anti-depressivo, forma revigorante de arquitectura natural, quase a atestar uma presença divina de inspiração anárquica no seu conceito de arte.
De cada vez que acabo uma semana allgarvia, fica-me a impressão gravada de passos na areia. Talvez seja esta, acima de todas as recordações de férias allgarvias, a que mais claramente me assoma à lembrança de cada vez que esta me ocorre. E posso, por artes que desconheço, distinguir claramente as pegadas na areia impressas em 1998 das de 2006, por exemplo, embora possa mesmo esquecer-me do local onde estive. E se lembro coisas indubitavelmente mais importantes, como as férias de 1987 – as gaivotas que levantavam em debandada após a nossa noite não dormida mesmo ali na areia, registadas naquele rolo fotográfico que se perdeu, é um das imagens que não hei-de esquecer nunca -, subsiste a imagem de dois pares de pegadas paralelos, um par de pegadas descalças, outro de botas, que se entrecruzam, rodopiam, correm por vezes, até caírem e acabarem numa anarquia de areia revolta.
Costumo dizer que cada um de nós deve deixar a sua assinatura no mundo. Ainda não consegui deixar uma que se veja mas, entretanto, vou deixando pegadas por aí que, tais mandalas pacientes de um monge libertino, se desvanecem no tempo entre as vagas que se renovam.
São estes momentos que se transformam em imagens que me ligam ao Allgarve, mais do que as noites quentes de cerveja ou a cacofonia das ruas ou a allgaraviada em que me falam.

Mas há algo que as praias nortenhas têm, que as allgarvias não conseguem. Existe algo de real, de palpável nas praias do norte, uma coisa qualquer que as transforma em algo de nós, ou nos transforma em algo delas. Tem a ver com a realidade.
Numa praia nortenha, sentados entre o sargaço que vem dar à costa, sentimos a presença indiscutível do mar, ali em frente, rugindo, arrastando, salgando a areia com impetuosidade. O cenário não é já de cartão, as figuras – também aqui marionetas que cedem ao fascínio do sol – são diferentes na sua identidade, desaparecem as lagostas que se arrastam para dar lugar a uma outra espécie, a dos animais saltitantes que gritam, gesticulam, estrebucham, falam alto, mandam vir por tudo e por nada. Parecem ter nascido para importunar.
E são as rochas entre as quais o mar tenta desbravar caminho que nos centram o olhar e deixam que os olhos se prendam num singular movimento hipnótico ao sabor das ondas, até só se escutar o barulho da água. O horizonte tem pôr-do-sol em tons que se iniciam no azul, passam pelo esverdeado, se transformam ali mais acima numa espécie de laranja fogo, e retomam a ordem, já inversa, céu acima, por uma ou duas horas.
Foi numa dessas praias, quando sentados na areia à beira de água, reparei na maresia e disse «Estás a ver? É isto que falta no Allgarve: a maresia.» Ela concordou, olhando o mar, virando a cara para o sol alto e inspirando fundo. Eu olhei uma vez mais para o mar, bem lá para o fundo do horizonte, percorri-o com o olhar até às rochas que, ali à minha frente cortavam os resquícios de ondas que assomavam os nossos pés. Inspirei também, bem fundo e, pela primeira vez, um pensamento escondido tomou forma viva, parecendo abrir caminho por entre os meus pulmões, atropelando tudo o que à frente surgisse, tomando a forma de um indisfarçável suspiro entrecortado, para sair, mudo, ou talvez num leve movimento de lábios. «Preciso de ser livre.»

É este tipo de depressão pós-férias em que me encontro agora. Chegado de um mundo cinematográfico paralelo, em slow-motion, enfrento uma vez mais o tempo real, multitasked multiplexed a que a exigência de um vencimento mensal me obriga.
Sendo da opinião de que todos nós, na medida do possível, devemos contribuir com algo útil para a sociedade que nos alberga, sou, no entanto, obrigado a confessar a minha mais profunda preguiça. Não gosto de trabalhar.
Entendo o trabalho como algo que se faz em troca de uma sobrevivência básica. Não o entendo como produção de algo, isso é outra coisa. Entendo o trabalho como algo a que sou, por necessidade, obrigado a fazer. Gosto de fazer coisas, de produzir, de obter resultados, apenas e só enquanto a actividade me interessar. A partir do momento em que se torna rotina, passa a ser trabalho. No linguarejar profissional, sou o que se chama pomposamente um “homem de projectos”, o que equivale a dizer que sou daqueles tipos que gostam muito de ter ideias, de planear o trabalho, de colocar as coisas em marcha e depois deixar outros a fazer as coisas.
E quem não é assim?
O único facto lamentável em tudo isto é o de existirem realmente pessoas que fazem disso profissão e eu não ser uma delas, pelo que sou forçado a limitar-me diariamente ao ganha-pão automático. Mas tenho uma vidinha santa, em comparação à grande maioria. O que não me serve absolutamente para nada.

Assisti em tempos, numa conferência, à intervenção de um especialista em coaching que, entre outras ilusões, apregoava que devemos ser já o que pretendemos ser no futuro. Explicando, ele exemplificou com o caso de alguém que sendo, por exemplo, gestor, e querendo ser, por exemplo, escritor, deveria desde já, de imediato, passar a apresentar-se como escritor a quem lhe perguntasse o que faz na vida. Mesmo sem uma linha escrita, nada o impediria de se sentir um escritor, ainda que com essa particularidade de não ter – ainda – publicado um escrito. Segundo o orador, seria essa espécie de compromisso para com ele próprio que, assumido publicamente, o faria tornar-se um escritor.
Esta espécie de teoria não é totalmente ridícula e poderá até resultar em certa medida. No meu caso, não resultaria nunca pois nem sequer sei bem o que diria que sou. Escritor? Este texto é um claro exemplo do que não devo dizer que sou.
Um outro caso estranho de auto-motivação que conheci é o de um mecânico com quem trabalhei em tempos que, de cada vez que se encontrava desempregado – e foram algumas –, tratava de engravidar a mulher. Segundo ele, este era o incentivo máximo para arranjar trabalho, fosse ele qual fosse. Absurdo mas real. Tinha, quando lhe perdi o contacto, um rancho de filhos.

«Preciso de ser livre.» Livre de quê? Dos cenários de cartão do Allgarve ou da realidade das praias nortenhas? Ser livre das pegadas que traço ou da maresia que me traz de volta a casa?
Feitas as contas, talvez a única coisa de que necessite de ser livre seja de mim próprio.
E que fazer? Dizer já que sou o que quero ser? Arranjar obrigações urgentes que me obriguem a tomar uma atitude?
Creio que nem uma coisa nem a outra poderia resolver o que quer que fosse. Não sei o que quero ser e não tenho espaço em mim para mais obrigações.

volto já

um minuto...

Dizia-te do minuto certo. Do minuto certo do amor. Dizia-te que queria olhar para os teus olhos e ter a certeza que pensavas em mim. Que me pensavas por dentro. Que era eu a tua fantasia, o teu banco de trás. O teu desconforto de calças caídas, de pernas caídas, da rua que não estava fechada porque nenhuma rua se fecha para o amor. Na cidade do meu sono, havia palmeiras onde alguns repetiam charros e putas e atiravam pedras ao rio. Mas eu nunca gostei de clichés. Nem de quartos de hotel. Nem de camas que não conheço. Eu nunca abri as pernas no liceu. Nunca abri as pernas aos dezassete anos, de cigarro na mão. Eu nunca me comovi com o sonho de ser tua. Eu nunca quis que ficasses, entendes? Que viesses. Queria que quisesses de mim esse minuto certo, essa rua húmida de ser norte. Queria que me quisesses certa, exacta, como o minuto onde me pudesses encontrar. Eu nunca quis de ti uma continuidade. Mas um alívio, uma noção de ser gente, entendes? Eu nunca quis de ti o sonho do sono ou da viagem. Nunca te pedi o pequeno-almoço, a ternura. Nunca te disse que me abraçasses por trás, que adormecesses. Eu nunca quis que me desses casa e filhos e lógica. Que me convidasses para dançar. Queria os teus olhos a fecharem-se comigo por dentro e tu por dentro de mim.
Queria de ti um minuto.
Um minuto.

Filipa Leal

still...

há muito tempo que te espero.
há muito tempo que não vens.
José Luís Peixoto
A vida inteira esperei por alguém como tu.
Mesmo sabendo que não sei como és.

E mesmo que
ainda não se tenha passado a vida inteira.
Jorge Reis-Sá

désir



Os teus lábios parados eram a noite, o abismo e o silêncio das ondas paradas de encontro às rochas. O teu rosto dentro das minhas mãos. Os meus dedos sobre os teus lábios e a ternura, como o horizonte, debaixo dos meus dedos. Os meus lábios a aproximarem-se dos teus lábios, a aproximarem-se dos teus lábios, a aproximarem-se dos meus lábios... teus lábios.
José Luís Peixoto


Não dizia palavras,
aproximava apenas um corpo interrogante,
porque ignorava que o desejo é uma pergunta
cuja resposta não existe,
uma folha cujo ramo não existe,
um mundo cujo céu não existe.
Entre os ossos a angústia abre caminho,
ergue-se pelas veias
até abrir na pele
jorros de sonho
feitos carne interrogando as nuvens.
Um contacto ao passar,
um fugidio olhar no meio das sombras,
bastam para que o corpo se abra em dois,
ávido de receber em si mesmo
outro corpo que sonhe;
Metade e metade, sonho e sonho, carne e carne,
Iguais em figura, iguais em amor, iguais em desejo.
Embora seja só uma esperança,
porque o desejo é uma pergunta cuja resposta ninguém sabe.


Luis Cernuda