autópsia de Mia
PRINCÍPIOS DA MINHA NATUREZA (tomo I)
I
todos os meus gritos ao mundo são depositados num único pio de mocho.
e é o seu olhar penetrante que carrega a plena certeza de que esta minha noite - só esta - transporta a sina da eternidade.
II
dizem-me que a felicidade sussurrou por ai que me esperava mesmo debaixo de um lençol de chuva. num daqueles dias em que cada gota transporta um favo de mel. será seiva de vida para decorar a gula feliz dos meus lábios, em cada segundo da aventura erguida no calcorrear dos teus.
III
e que eu esteja envolto no turbilhão nascido da conversa das pétalas, enquanto abandonam o caule, sedentas da viagem alada, quando planam ao encontro de uma dança com a terra, onde a sua morte será o sacrifício para o nascimento do meu húmus.
estarei de volta, num erguer firme, sólido no odor da minha nova flor.
da minha janela vê-se uma espécie muito rara de angústia
tem o corpo que não ousei que me fosse
usa o amor como se fosse a origem da sede
e sossega-se contra o peito da alvorada
da minha janela vê-se uma espécie única de medo
chama-se eu mas diz-se tu
e por vezes nós quando prende a vida
a algo tão falível como a vida
da minha janela não se vê mais nada
ouve-se o silêncio contra mim
e chove morte contra os vidros
por dentro como soa o fim
Pedro Sena-Lino
autópsia de Mia
SONHO
Sabes por vezes queria beijar-te. Sei que consentirias. Mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter- nos- íamos separado porque os beijos apagam o desejo quando consentidos. Foi melhor sabermos quanto nos queríamos, sem ousarmos sequer tocar nossos corpos. Hoje tenho pena. Parto com essa ferida. Tenho pena de não ter percorrido teu corpo como percorro os mapas, com os dedos teria viajado em ti do pescoço às mão da boca ao sexo. Tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro. Acordado perto de ti. As noites teriam sido de ouro e as mãos teriam guardado o sabor de teu corpo.
al berto
autópsia de Mia