O meu corpo, se bem que leve, é um peso que arrasto sem forças para tanto, um peso que me dói, além de me pesar e de me coagir a arrastá-lo. Desejaria não o sentir, como não sinto o ar que respiro, embora esteja envolvida nele e com ele. Queria deslocar o corpo sem esforço, tal como desloco fluidos, cheiros, poeira, quando caminho de qualquer lado para qualquer lado. Queria disponibilizar o corpo, guardá-lo bem fechado numa gaveta secreta e, quando precisasse, ia lá buscá-lo, trazia-o comigo e dizia-lhe: agora quero sentir-te, mostra-me lá como é , dá-me apetites e desejos que eu possa facilmente satisfazer, dá um prazer à alma que te habita...
Fernanda Botelho


Angus & Julia Stone - Hush



Caí no silêncio há vários dias. Quero falar-te das horas incandescentes que antecedem a noite e não sei como fazê-lo. Às vezes penso que vou encontrar-te na rua mais improvável, que nos sentamos diante do rio e ficamos a trocar pedaços de coisas subitamente importantes: a tua solidão, por exemplo. Mas depois, virando a esquina, todas as esquinas de todos os dias, esperam-me apenas as aves que ninguém sabe de onde partiram.

Vasco Gato

for you...



Um anjo ofereceu-me um mundo de palavras só para mim
deixei que lentamente penetrassem a carne do meu corpo
e o meu coração já desprendido pulsou sangue de esperança

julguei que abraçava de novo na noite a minha alma gémea
mas afinal amputei as asas a um anjo abandonado por deus
um anjo de cabelo negro com uma ferida aberta no ventre

afiei os lápis no gelo cortante do gin e abri-lhe mais a ferida
deixei-o encurralado no quarto de banho cheio de névoa mortal
para a flor do seu corpo se desvanecer sob uma nuvem de sangue

agora já não há golpes nos pulsos que possam redimir o crime
condeno-me a uma morte dilatada com vinho e fumo e velas
fogueiras acesas a noite inteira à espera de uma brisa de asas

em sonhos mergulho inteiro na ferida aberta do seu ventre
e depois embriago-me indiferente aos copos estilhaçados
e aos cigarros esquecidos a abrirem buracos no corpo

defendo-me desenhando desculpas no sangue coagulado na pia
na merda da sanita e nos ranhos matinais de cinza e de ressacas
mas isso não cicatriza a ferida aberta no ventre do meu anjo caído

o pó invade os móveis e as roupas tingidas de preto desbotam
sem saber onde estará o meu anjo se ganhou novas asas brancas
se continua aberta a ferida no seu ventre se há ainda sangue sequer

tenho as facas preparadas para amputar um a um dez dedos dez
ou para vazar os olhos ou para cortar a língua suja e corrompida
pelas palavras que não disse ou disse gritando-as para um poço

se calhar as asas do meu anjo já não vão crescer brancas ou não
melhor seria eu ter nascido já amputado de pés e mãos e língua
esterilizado de todas as palavras e pensamentos perigosos

a faca mais aguçada não será capaz de me abrir uma ferida no ventre
por isso o nosso sangue e tripas e fezes nunca se hão-de misturar
nenhum milagre cicatrizará a sua ferida aberta e a minha por abrir

não era bem isto que eu queria dizer-lhe agora ou antes ou nunca,
como um castigo a ferida no seu ventre continua aberta e a latejar
o sangue seiva a brotar com a esperança de frutos futuros talvez

para mim já não há nem deuses misericordiosos nem ninguém
cubro o corpo de cinza e pedras da praia e uma vela escarlate
acesa até ao fim do mundo.

Carlos Alberto Machado






Um cigarro
ninguém tem
um cigarro?
um copo de vinho
um amor perdido
uma causa iludida
uma angústia a mais?
alguém quer trocar
de veias
de sangue
de coração
de pulmões?
um cigarro
ao menos
ninguém tem
um cigarro?

Carlos Alberto Machado

Radiohead - All I Need (Official MTV Video)



não se sai do abismo,
aprende-se a sua linguagem.

Vasco Gato