Não sei para que lado da noite me hei-de virar
onde esconder de ti o rio de fogo das lágrimas
quase a transbordar e acendo mais um cigarro
e falo atabalhoadamente de um futuro qualquer
e suspiro de alívio porque não ouves o que digo
ou se calhar também não sabes onde te esconderes
esperamos que se ilumine o lado certo da noite
é quando se esgotam as palavras e os silêncios
e a minha mão procura a tua que a recebe
e a noite se unifica e todos os rios secam
menos um por onde navegamos
para abolir a noite.
Carlos Alberto Machado

Para sobreviver à noite decidimos perder a memória. Cobríamo-nos com musgo seco e amanhecíamos num casulo de frio, perdidos no tempo. Mas, antes que a memória fosse apenas uma ligeira sensação de dor, registámos inquietantes vozes, caminhámos invisíveis na repetição enigmática das máscaras, dos rostos, dos gestos desfazendo-se em cinza. Escutámos o que há de inaudível em nossos corpos. Era quase manhã no fim deste cansaço.
Al Berto
o modo súbito de ficar parada
quando às vezes há soluços no avesso da voz
aperto as mãos para dar cor à pele
sem te saber perguntar pela ausência
se estivesses aqui,
como quem fala do tempo,
não te iria dizer que por cima da voz há relâmpagos.
Maria Sousa
é no silêncio que melhor ludibrio a morte
não,
já não me prendo a nada
mantenho-me suspenso neste fim de século
reaprendo os dias para a eternidade
porque onde termina o corpo deve começar
outra coisa
outro corpo
ouço o rumor do vento
vai alma
vai
até onde quiseres ir
Al Berto
run...

Tu corres a meu lado
na direcção contrária.
Qual de nós irá chegar
primeiro à solidão?
José Miguel Silva
Olhas para além do muro... e o que vês?
O tempo para além do tempo, a tarde que não chega, ou a noite que vai chegar quando menos a esperas, uma última ave no limite do céu, pedindo-te que a não sigas. Mas não cedas ao abraço da árvore, ao apelo das raízes, à melancolia de um desejo de horizonte. Encosta-te a esse muro, sabendo que ele desenha o espaço que te foi dado, e que as tuas mãos descobrem no frio da pedra. Não te resignes ao que existe. A ave que desapareceu por trás da colina conhece o caminho que os teus olhos procuram.
Nuno Júdice
desligámos a palavra do seu sangue
entre nós circula apenas um silêncio disfarçado
e um terror que não cuidamos
é possível entrever as lâminas por baixo da voz
ferindo a finíssima pele, a vaga atenção,
os pulsos finos e sem mistério
estendemos as mãos como ramos nus
atravessando o rigor líquido da noite
abrimos os livros, os mapas, os olhos
mas as entrelinhas estão há muito desabitadas
Vasco Gato
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