A ferida por baixo da cicatriz- quem cura?

Por vezes são estrelas que sobem

quando a água ocupa o espaço

e um brilho esquivo tropeça

no cansaçodo dia

No chão ainda morno

ardem pétalas sossegadamente

e há a melancolia de um pássaro

Na varanda esquecida

por trás de toda a magia da noite

(há tanta solidão em quem repara)

dura um homem que diz baixinho

assim quase para fora


A ferida por baixo da cicatriz- quem cura?


Vasco Gato

"estou farta de homens(...) sinto-me muito só junto deles"


Mas este homem perturba-me. Poderia amá-lo, erguê-lo da sua dolorosa confusão, colocá-lo numa dignidade de que, é evidente, perdeu o sentido. Agita-se de um lado para outro com as grandes mãos batendo contra as pernas, magro e cheio de uma fome terrível. Fome desta mulher que chega cheirando à cidade nocturna. Eu poderia entrar, agarrar-me a ele, dizer-lhe assim: aqui estou. Ele é ridículo, ridículo. Com a sua música, os olhos falsamente frios, o seu resguardo mudo. Uma parte de mim mesma resiste, a parte mais clara e isenta, a mais implacável, mas também porventura a mais justa. É um inimigo. Estes homens esbulham-nos. Exploram a fonte maternal de que somos dotadas, ficam ali sugando o nosso leite, e deixam-nos completamente vazias. Raça de exploradores. Mergulham a cabeça entre os nossos seios brancos e somos obrigadas a acariciá-los em silêncio, enquanto de olhos cerrados, através de uma sumptuosa orgia de recordações e contradições, compõem a sua paz interior, enquanto se recuperam, eles, deixando-nos exaustas. Então dizem: os teus seios. Ou: o teu cabelo. Miserável. Mas estremeço. Cegueira maternal, furiosa força de doçura que me empurra para o homem, para a sua perpétua e louca orfandade. Eu poderia fechar os olhos, avançar por esses equívocos terrenos, chegar lá, chegar lá. E esse espírito abria-se, reorganizava-se – o espírito do último homem. Queres um cigarro? – pergunta ele. Aceito. Acende-mo com gentileza, embora se pudesse esperar, devido a toda esta tensão, que simplesmente me atirasse o maço de cigarros e a caixa de fósforos. Pretende ser distantemente gentil, mas a mão treme-lhe quando me estende os cigarros. Quer dar-se, dar-se para lá de qualquer expressão inóspita, da teoria masculina da força e do poder. E então ocupo-me do meu corpo. Penteio-me, calço as meias, ponho baton. O homem folheia um livro. Coloca um disco no pick-up. E quando se vira, talvez para dizer: por favor, fica – eu levanto a cabeça e pergunto: já deixou de chover?


Herberto Helder



Tu disseste para eu guardar o silêncio neste quarto. Para que nada dissesse, nem o teu nome. O teu corpo ondulava e eu aceitei a ausência. Disseste para eu nada pedir, para não nomear, não ter nenhuma palavra, nem exclamação, nem sorrisos, para não estar morta também. Para te responder com as mãos, silenciosas, os dedos a baterem-te como a chuva, tão de leve.

Estás suspenso, leve e suspenso e quente, portanto vivo, que surpresa! Só te envolves no berço, sem palavras, como antes delas, com o rosto amado a devolver-te um sinal de reconhecimento. Voltas a fechar os olhos, aninhas-te nos meus braços como se não me visses nunca, como se eu não existisse fora desse abraço por dentro. O meu cheiro como uma palavra acariciando a criança em ti, toda, e a curva da nuca abandonada. O peso tímido da tua cabeça a furar-me a pele, a quebrar-me o peito. Mordes a memória do leite, mexes os lábios, dói-me a secura. Não digo nada, o queixume é já desejo. Tem de ser plano e eterno este tempo, como se a morte pudesse roubá-lo se o dissesse. Não me pedes nada, e nem ousas a violência.

Ocultas tudo para que seja como antes do sono, um mergulho lento, desmembrado, com a aprovação de todos. Os lábios são doces, não procuram, conhecem a felicidade, provam com a língua, provam mais, redondos, enrolados, enormes como o quarto, com a cama que se afunda e nos leva, líquidos, desfeitos um no outro, numa celebração comum, silenciosa, não nomeada. Um abraço sem gestos, só um equilíbrio ténue, frágil.

Escorregamos sem esforço, não sei onde caímos, é a tua memória que nos guia, é o meu silêncio, todo o consentimento e o dom do teu acolhimento para que tudo aconteça longe daqui, sem eu nunca saber onde me levas e vou.

Lídia Martinez

Talvez que o que eu lhe dissera sobre o homem tivesse tido uma repercussão abrupta,tal era a distância de experiência que nos separava. Não havia em mim qualquer lucidez cínica e arrepiante, como se desejar ter um homem fosse criminosamente uma ilusão. Não. De modo algum. Falara-lhe apenas, antecipando a necessária deslocação do toque. Vê-la tocar no tecido fez-me lembrar, ou pensar que nela alguma memória habitaria mas tão diáfana e subtil que, por comparação, lhe seria difícil iniciar um esboço de inventário, dar nomes aos objectos, ou objectos aos nomes falar da brevíssima ou levíssima diferença que sobressaísse, mas onde cada coisa haveria de aparecer lentamente,tacteando.
... enquanto a mão percorria o espaldar, vi formar-se lentamente uma diferença imanente, uma presença ausente que já antes lhe roçara o corpo,e se esvaíra. Olhei-a no rosto,o meu olhar encontrou-a a roçar-se pelo vestido pensei que estivesse nua, que apenas o vestido a vestisse, ou que o vestido apenas a vestisse, acreditei que falasse um nome, que o falasse abruptamente, sabendo que é infinita a violência da mulher, como é infinita a sedução do vestido que a veste, não sabendo, nós mulheres, pela primeira vez o digo, qual é em nós a substância, a mão que roça pelo espaldar, ou o tecido branco que cobre de atributos a própria mesa.

Se o toque não for decidido, e o medo nos invadir, não terei palavras para lho dizer. Como dizer-lhe que uma lâmpada se funde inesperadamente, que um prato cai sem darmos por isso, quando isso é a própria queda, que uma voz desaparece repentinamente de nos falar que um afecto é, de facto, tudo (mas não de tudo quanto o prende), que teria gostado de escrever romances se o tempo não existisse, que se o toque fosse indiferente apenas existiriam atributos ou, se preferes, enquanto acaricias esse espaldar só haveria vestidos, e o corpo onde o deixarias sem ter, sequer, a noção de afecto a quem o dar...não olhes para mim com esse olhar.

Sem uma memória decidida, as coisas desconhecidas flutuam. Sim, imagino. Disse-lhe, soletrando todas as letras, o cheiro fasto que se desprende do espaldar é de um homem, odor denso, de um homem incómodo, embaraçoso, opaco. Quem gostarias de ver a teu lado?
Maria Gabriela Llansol




Encheram profunda taça e envolveram-se em fervor.
Ficou-lhes na boca — presa ao crescente desejo
de mais beberem, de mais conhecerem — o sabor
da outra Vida maior, onde os levara o ensejo
de ultrapassarem a carne.

Em solidão limitados,num barco sem dia a dia,
compromissos ou tratados,singram velozes sem tempo,
definidos pela estrelaque lhes indica, serena e nitidamente, o norte.
(...)

António Salvado


i quit...


estava nua, só um colar lhe dava
horizontes de incêndio sobre o peito,
a transmutar, num halo insatisfeito,
a rosa de rubis em quente lava.

estava nua e branca num estreito
lençol que o fim do sono desdobrava
e a noite era mais livre e a lua escrava
e o mais breve pretérito imperfeito.

só o tempo verbal lhe fugiria,
no alongar dos gestos e requebros,
junto do espelho quando as aves vão.

toda a nudez, toda a melancolia,
a dor do mundo, a deslembrança, a febre,
os olhos rasos de água e solidão.

Vasco Graça Moura