shuu..

Dá-me a tua mão:
Vou -te agora contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois factos existe um facto, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir- nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

Clarice Lispector


Ela gostava de tudo aquilo: da mesa da cozinha, dos pequenos bancos de madeira, das árvores que conseguia ver da janela, de uma certa pureza do ar que a obrigava a renunciar aos prazeres de adulto: aquele tempo tinha uma marca infantil. Crescera naquela casa. Mas agora acabou: estava já crescida. Como uma investigação que termina, ela sentia que chegara ao fim. Já não cresço, murmura. Não havia necessidade de não ser sincera: estava sozinha, podia dizer a verdade.
Gonçalo M. Tavares


Brandamente, por vezes, te desvio
de mim, para melhor, depois, sentir
que és bem tu que eu agarro, acaricio,
bem tu que eu pude, em mim, fundir.

José Régio

rainy days



Vou-me sentar aqui, respirar até doer
as coisas possíveis nunca reais;
aprender, nó a nó, como te soltas.
Vamos cair num poço, sem bússola e pára-quedas,
vamos ser o primeiro amor a dois no mundo.

António Franco Alexandre




há muito que deixei aquela praia
de grandes areias e grandes vagas
mas sou eu ainda quem na brisa respira
e é por mim que espera cintilando a maré vaza


Sophia de Mello Breyner Andresen



em pleno voo digo
nuvens relâmpago

ervas àguas

homem mulher

movimento oceanos

exaustos corpos transumantes paixões

digo
preciso do sonho
dos gestos exactos da alegria

Al Berto

Through your heart


Através do teu coração passou um barco
Que não pára de seguir sem ti o seu caminho

Sophia de Mello Breyner Andresen

vendem-se sentimentos


Os meus sentimentos deviam guarda-los, ainda lhe podiam fazer falta, e a mim não me serviam de nada, devia tê-lo aconselhado a guardar os sentimentos, nunca sabemos quando precisamos dos sentimentos, da latinha de fermento que está há anos na despensa, da camisola de lã que não é vestida há mais de cinco Invernos, nunca se sabe quando precisamos de coisas mesmo se nunca as utilizamos, não fosse essa incerteza e punha um anúncio no jornal:Vendem-se sentimentos.Estado impecável, como novos. Oportunidade única. Motivo mudança de vida. Bom preço

Dulce Maria Cardoso

here is...





here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life; which grows
higher than soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart

i carry your heart (i carry it in my heart)
e. e. cummings

Às vezes paro à porta com o olhar perdido e habituado ao silêncio, há mais desertos ainda, dias e morte noutros olhos. Com a garganta habituada à sede,com os pés às feridas, saio para a rua e já não há umbrais. Ando um dia, passo outro, acabo uma semana de vidros partidos e tosse mais velha. Hoje parece que sempre choveu sobre mim, e não me importa se a chuva já não se parece ao esquecimento e apenas deixa charcos, paredes mais sujas e fuligem e tristeza nos olhos de rímel, ainda tenho sede e não me importa voltar às coisas más e aos velhos tugúrios à procura de algo que não encontro nem recordo, que costuma principiar por um encontro, talvez por outra palavra e corre o perigo de crispar-se até à forma da folha da faca. Às vezes tudo é tão estranho que não basta continuar a andar.
Alfonso Barrocal





Não sabemos nada.
Nunca saberemos se os enganados
são os sentidos ou os sentimentos,
se viaja o comboio ou a nossa vontade
se as cidades mudam de lugar
ou se todas as casas são a mesma.
Nunca saberemos se quem nos espera
é quem nos deve esperar, nem sequer
quem temos de aguardar no meio de um cais frio.
Não sabemos nada.
Avançamos às cegas e duvidamos
se isto que se parece com a alegria
é só o sinal definitivo
de que nos voltámos a enganar.

Amalia Bautista





Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.

Complicações de luas e saliva

José Gomes Ferreira

éramos duas pessoas


Éramos duas pessoas que tinham um segredo de palavras.
Éramos duas pessoas que, ao longe, tinham partilhado um instante.
Éramos duas pessoas.
Tudo em nós era igual.
José Luís Peixoto

certas manhãs...





Certas manhãs chegava
esmagado pela luz
longo, frívolo, ofensivo
qualquer gesto aludia
a uma espécie de temor
a tristeza daqueles que pertencem
a lugar nenhum

Vivia tudo num instante
a solidão, os rancores
as alegrias dos outros
o silêncio do outono

Nunca o amor tocara o seu corpo
com a intensidade do medo
tornou-se parte de um rio
nem perto, nem longe
da palavra justa

Ele só pedia
"não me digam nada"

José Tolentino Mendonça